sábado, 14 de setembro de 2013

TRABALHO DECENTE AO TRABALHADOR DOCENTE: Reflexões sobre a pauperização e a resiliência do professor

Alexandro Muhlstedt

RESUMO: O professor é um trabalhador que vivencia muitos desafios nas escolas públicas estaduais. As situações cotidianas vão muito além de sua preparação profissional, extrapolando os limites de sua jornada de trabalho e de suas forças mentais. Esta constatação é resultado de um processo de pauperização da profissão que vem ocorrendo ao longo dos últimos 40 anos. Neste artigo, a partir de pesquisa bibliográfica, são apresentados elementos em torno do processo de democratização do espaço escolar a partir dos anos 70 e da pauperização da profissão docente. Apresenta-se ainda questões sobre a feminização da docência e o adoecimento dos professores. Defende-se a idéia de uma profissionalidade que considera a construção de perfis resilientes e reflexivos, bem como a configuração de condições que permitam o trabalho decente. Para uma escola pública melhor, o investimento na ação pedagógica do professor deve levar em consideração o crescimento pessoal e profissional desses sujeitos do ensino. Fortalecidos pelo sentimento de resiliência os professores estarão mais bem preparado para as muitas adversidades que enfrentam no cotidiano de sua ação pedagógica na escola, de modo crítico e reflexivo.
Palavras-chave: pauperização do trabalho; trabalho decente; saúde do professor; resiliência.

Introdução
[...] resistir sem partir no sentido 
de desmobilizar todo o potencial do seu ser, 
querer e ter para mudar, transformar e, porventura, 
transmutar as situações para mais ou menos adversas para melhor. 
(José Tavares, 2001) 

O professor ou o trabalhador docente (BARBOSA, 2011) vive, hoje, nas escolas#, em especial a escola pública, desafios que vão muito além do que se preparou e se prepara para enfrentar, extrapolando os limites de sua jornada de trabalho e de suas forças mentais (VASQUES-MENEZES; CODO; MEDEIROS, 1999). Diversos estudos discutem o trabalho docente no contexto escolar e no âmbito político-social (APPLE, 1995; ARROYO, 2003; ENGUITA, 2004; HARGREAVES, 1998; HYPÓLITO, 1997; OLIVEIRA, 2006; SANTOS, 2004).
É quase redundante dizer que tudo está em constante movimento e mudança no mundo, em contínuo devir. E esse pressuposto, presente no trabalho em geral, se evidencia na escola e no trabalho docente. Essas mudanças exercem influências sobre a escola e o trabalho docente, alterando sua forma, suas condições e os interesses que a permeiam. E nem sempre as mudanças na educação foram positivas.
Ao longo da minha carreira, inicialmente como acadêmico do curso de Pedagogia e, posteriormente como Docente e Pedagogo, tenho estudado a trajetória de professores e professoras, inclusive a minha própria; o que me permite elencar uma série de elementos que demonstram a pauperização da categoria e a precarização das condições de trabalho (ESTEVE, 1999). Também é possível vislumbrar as possibilidades de saída desse processo de pauperização por meio da análise dos processos de profissionalidade (AMBROSETTI E ALMEIDA, 2009) e desenvolvimento das posturas que apresentam resiliência para superar as dificuldades (TAVARES, 2001) que se manifestam no cotidiano da sala de aula.
Neste sentido, é comum observar que este cotidiano de boa parte das escolas é permeado por inúmeros aspectos que caracterizam essa pauperização e que ilustram esse conjunto de dificuldades, como por exemplo: variados tipos e formas de violência; a sensação da perda da autoridade docente; um “mal estar” psíquico; a desistência frente às dificuldades educativas; o adoecimento mental e físico; a deterioração das condições físicas de trabalho; as relações truncadas e estereotipadas; a fragmentação das atividades; o desânimo pela busca de alternativas; a descrença em si e no próprio sistema educacional, entre outros. Também, no âmbito social, observa-se o aprofundamento do processo de alienação, tanto nas relações de trabalho, com políticas estaduais de ampliação do controle sobre o trabalho docente, como de sua alienação como ser político, agente histórico, ator social e sujeito (TOURAINE, 2007).
Neste artigo, deter-me-ei no aspecto que insurgiu a pauperização da docência, expondo argumentos e fatores que levaram ao desprestígio social da profissão, os quais apresentam inúmeros sinais de crise na profissão docente (DINIZ-PEREIRA, 2011), bem como a defesa de um espaço de expressão do trabalho decente aos profissionais responsáveis pela formação intelectual e social das novas gerações (OIT, 2012) e a construção de perfil profissional reflexivo (PIMENTA, 2002; PERRENOUD, 2001; SCHON, 2000), incluindo a aprendizagem de atitudes resilientes frente às adversidades (EL ACHKAR, 2013; TAVARES, 2001).


1. Pauperização da profissão docente: aproximações históricas


Quando estudamos um pouco da história da educação recente no Brasil, mais especificamente sobre a Educação Básica nos últimos quarenta anos, percebemos que a mesma é marcada por vários fenômenos que configuraram a atual educação que temos (PENIN, 2009).
Neste artigo, tentarei explorar dois desses fenômenos: a democratização do espaço escolar e a pauperização da profissão docente (BALZAN, 1983; BALZAN, PAOLI, 1988; HYPOLITO, 1991; PARO 1994; SAVIANI, 2000; SILVA, 1991). Os mesmos estão intimamente ligados, bem como aos demais fenômenos. Detenho-me nestes dois por serem decisivos para a compreensão do argumento que defenderei. Evidentemente que todos os demais fenômenos (institucionalização de sistemas de ensino, intensificação do trabalho docente, fragmentação entre quem pensa e quem executa tarefas na escola, entre outros) também configuraram o cenário atual.
O primeiro fenômeno que destaco é o processo de democratização do espaço escolar especialmente a partir do final dos anos 70 (OLIVEIRA, 2006; PENIN, 2009). Este movimento resultou num crescimento e ampliação da rede de ensino e, consequentemente, aumentou a heterogeneidade do alunado. Houve um significativo acesso à escola de crianças vindas das camadas populares.
Até a década de 70 os professores de escolas públicas atendiam em grande parte os alunos filhos das classes mais privilegiadas, compondo o cenário escolar os filhos daqueles que comandavam a Nação. Esses professores, formados em escolas de alto nível, tinham sua competência técnica e moral absolutamente respeitada e valorizada. Neste sentido, a profissão docente possuía uma expressiva valorização social (PENIN, 2009). Inclusive salarial.
Com a vinda dos alunos das classes populares à escola, combinada com as mudanças que ocorriam na sociedade, esses professores, acostumados a um estilo e a um padrão burguês de ensino, sentem-se forçados a rever metodologias, avaliações, currículos, etc. e começam a ter dificuldades em realizar o processo de ensino nos moldes para os quais foram preparados. Afinal, o novo perfil dos alunos não se “encaixava” ao que estava estruturalmente organizado. Com isso, as famílias que, ao notarem a presença de filhos de trabalhadores na escola pública e a dificuldade desta em lidar com as mudanças, iniciam um certo movimento de transferência para escolas particulares (ROMANELLI, 1991), onde poderiam cultivar seus valores, crenças e ideologias. Parece-me uma discriminação não assumida, tampouco nítida, mas que é pano de fundo para o estabelecimento e o crescimento da rede particular de ensino.
É justamente a partir dos anos 70 que se acentua o agravamento das condições econômicas e a deterioração do sistema público de ensino, como consequência, como já exposto, de sua expressiva expansão, repercutindo com efeitos desastrosos no funcionamento das escolas, especialmente nos grandes centros urbanos (PAIVA, 1998). E essa expressiva expansão do acesso não foi seguida por um correspondente investimento das verbas públicas. Até então, os espaços escolares públicos mostravam-se modestos na oferta de acesso e seletivos quanto à permanência dos alunos e sua progressão escolar. Uma nova realidade se impunha e novos desafios eram revelados.
O segundo fenômeno, a pauperização da profissão docente (BALZAN, 1983; BALZAN, PAOLI, 1988; DINIZ-PEREIRA, 2011), emerge a partir da necessidade de um contingente cada vez maior de profissionais para atender ao público escolar que só vinha crescendo, oriundo das classes populares. Desse modo, houve crescimento da demanda social por mais escolas, consequentemente, por mais professores. O suprimento de docentes nas escolas acaba ocorrendo por meios variados, sendo realizadas várias adaptações: expansão das escolas normais em nível médio, cursos rápidos de suprimento formativo de docentes, complementação de formações de origens diversas, autorizações especiais para exercício do magistério a não licenciados, admissão de professores leigos etc. (GATTI, 2009). Esse crescimento rápido possibilitou a entrada no magistério de pessoas desqualificadas para o ensino e sem a devida preparação para o atendimento ao público oriundo das classes populares.
 Consequentemente, esta ampliação no contingente e na jornada daqueles que já estavam atuando (muitos professores tiveram de assumir jornadas duplas ou triplas onde não havia disponibilidade de outros profissionais), cujos salários e rendimentos não acompanharam, levaram ao desgaste e ao cansaço, bem como a desistência da profissão de muitos professores (ALVES-MAZZOTTI, 2008; ANDRADE, 2006), sem contar o processo de fragmentação do trabalho e dos saberes (HYPÓLITO, 1997). E isto justamente num momento em que o aumento de heterogeneidade no aluno exigia um profissional com qualificação.
Ao caracterizar o professor em assalariado, em trabalhador, é possível observar no mesmo momento histórico, a coincidência com a feminização da profissão (ALMEIDA, 1998; CATANI, BUENO E SOUZA, 2000; LOURO, 1986; SOUZA, 2006). Atualmente a maioria dos trabalhadores nas escolas estaduais são mulheres#. Dito isso, depreende-se que a análise de classe é insuficiente para interpretar o trabalho de ensinar se não levar em conta a questão de gênero.
 Numa sociedade patriarcal o trabalho feminino é considerado de menor prestígio, menos profissional (LOURO, 1986). Apple (1986: p. 61) aponta que “está bastante claro (...) que tão logo um trabalho torna-se feminino, seu prestígio diminui. Há tentativas de proletarizá-lo, de tirá-lo do controle das pessoas que o fazem e de racionalizá-lo...”. Deste modo, seguindo a ideologia patriarcal, a educação escolar era adequado para as mulheres por ser uma extensão do trabalho doméstico.
Com o aumento da demanda por professores, a mão-de-obra feminina foi absorvida (ALMEIDA, 1998; SOUZA, 2006) e isso contribuiu para os primeiros rebaixamentos salariais que afugentavam profissionais homens, levando-os a procurar empregos em outras áreas.

A escola normal iria, paulatinamente, suprir uma necessidade e um desejo feminino. A entrada das mulheres nas escolas normais e a feminização do magistério primário foram um fenômeno que aconteceu rapidamente e, em pouco tempo, foram maioria nesse nível de ensino (ALMEIDA, 2006, p. 82).

Entender a natureza do trabalho docente não passa somente pela análise profunda de técnicas e procedimentos pedagógicos, do conhecimento como fonte do trabalho, da relação professor-aluno, mas é necessário, como ponto de partida, compreender que local de trabalho é a escola e esta mantém forte a sua relação com a sociedade moderna contemporânea.
Por outro lado, a demanda de um número cada vez maior de professores para uma população escolar crescente foi, de certa forma, atendida pela expansão, nos anos 90, do ensino superior#, principalmente mediante um alargamento do ensino privado e a criação indiscriminada de cursos de licenciatura nestas instituições (BOSI, 2000). Isto foi impulsionado por mudanças na legislação nacional que contribuiu para o acesso à profissão docente de ex-alunos das camadas populares. Sendo que anteriormente os professores eram, em grande maioria, provenientes de classes médias. Começa um movimento de desinteresse pelos cursos de formação de docentes daqueles de origem da classe média (PENIN, 2009). Assim, muitos professores foram formados em cursos aligeirados e facilitados, como forma de preencher o mercado de trabalho, submetendo-se inclusive a contratos de trabalho subalternos#. Esses formados das classes populares, que enfrentaram o processo de mudança da escola nos anos 80 e 90 como alunos, caracterizam, em certa medida, as representações sociais de desvalorização da profissão. Aceitam salários menores e submetem-se a condições de trabalho incompatíveis com o que o trabalhador merece. Com isso, ocorre uma contenção dos salários dos professores das redes públicas, especialmente pela demanda crescente de formados.
Os trabalhadores docentes submetidos a uma política# de arrocho salarial sem precedentes na história, tiveram grandes perdas salariais e os novos contratos flexibilizados. Essa flexibilização do trabalho, que ocorre segundo Pochmann (1999), em relação às formas de contratos e da legislação social e trabalhista (flexibilização externa), com efeitos desastrosos sobre o mercado de trabalho, acarreta também o desemprego (CASTEL, 1998; POCHMANN, 1999).
Assim, o docente além das perdas salariais, também perde o prestígio social ao longo das últimas décadas.  Esse professor, majoritariamente de origem de classe média, compunha uma categoria que foi, aos poucos, sendo caracterizado por uma nova geração que têm sua origem, em geral, na classe trabalhadora mais explorada (RODRIGUES, 2007).
Pode-se compreender este fenômeno, nos anos 80 e 90, observando-se também as fortes interferências dos organismos internacionais de financiamento, cada vez mais expressivas e decisivas, incidindo sobre os rumos da escolarização e sobre a formação dos seus profissionais (PAIVA, 1998). Paradoxalmente, nesse mesmo período, os profissionais começam a ser cobrados pelo que socialmente ficou reconhecido como um rebaixamento da qualidade da educação básica, subjugados a uma hiper-responsabilização em relação à prática pedagógica e à qualidade do ensino (SACRISTÁN, 1999). Porém, não é o foco deste artigo, apesar dessa cobrança ter “peso forte” sobre os professores, e acabou por interferir na não escolha por cursos de licenciatura pelos jovens egressos do Ensino Médio.


2. O trabalhador docente, o “mal estar” da profissão, a resiliência e o trabalho decente


Entendo o professor como trabalhador que vende sua força de trabalho e que sobrevive desse trabalho.  Mas que trabalho é esse? Aqui, fundamento a categoria trabalho como aquela que engendra uma permanente reconstituição da atividade humana, responsável pela modificação do indivíduo e do meio em que vive. Para Vásquez (2007, p. 222),

(...) a atividade humana é, portanto, atividade que se orienta conforme os fins, e estes só existem através do homem, como produtos de sua consciência. Toda ação verdadeiramente humana exige certa consciência de um fim, o qual se sujeita ao curso da própria atividade.

O processo de formação humana, que traz repercussões diretamente ao meio em que o indivíduo vive, só é possível ocorrer em virtude da consciência, que é característica humana, que diferencia o homem dos outros animais. Marx e Engels (2002, p. 22) afirmam que “(...) a consciência nunca pode ser outra coisa senão o ser consciente, o ser dos homens é o seu processo real de vida”.
O homem racional e consciente planeja e materializa suas ações, bem como realiza suas atividades e consegue registrar essas experiências que são aperfeiçoadas e repassadas de geração em geração. É por meio do trabalho que o homem se constitui histórica e culturalmente e modifica o meio em que vive. O trabalho sempre esteve presente no bojo das relações sociais como necessário à sobrevivência.

Pelo que expus ao longo deste texto afirmando que as teses do fim da centralidade do trabalho e sua substituição pela esfera comunicacional ou da inter-subjetividade encontra seu contraponto quando se parte de uma concepção ampliada de trabalho, que o contempla tanto em sua dimensão coletiva quanto na subjetiva, tanto na esfera do trabalho produtivo quanto na do improdutivo, tanto material quanto imaterial, bem como nas formas assumidas pela divisão sexual do trabalho, pela nova configuração da classe trabalhadora, etc.; dentre vários elementos anteriormente apresentados, permitem recolocar e dar concretude à tese da centralidade da categoria trabalho na formação societal contemporânea (ANTUNES, 1999, p. 182).

A centralidade do trabalho se faz enquanto elemento fundante e estruturante do processo de sociabilização humana, dotando a vida de sentido e realização o que nas próprias palavras de ANTUNES (1999) “é totalmente diferente de dizer que uma vida cheia de sentido se resume exclusivamente ao trabalho”. Na busca de uma vida cheia de sentido, a atividade laborativa, que está muito próxima da criação artística, transforma-se em elemento humanizador.
Em consonância com o conceito de trabalho em geral, o trabalho docente é entendido como a práxis que constitui a atividade profissional. O professor, ao mesmo tempo que desenvolve a sua atividade profissional, contribui para que mudanças ocorram ao seu redor e, simultaneamente, reconstrói-se pelas experiências. Nesse processo, ele não só constitui a sua identidade, mas também colabora com ações, valores e práticas para a constituição identitária dos estudantes que o circundam. Ao mesmo tempo de sua ação interfere nas relações dos outros, também sofre a interferência dos outros em sua ação.

Parece que ser professor e ser aluno  extrapola a relação  de ensinar­  aprender os conteúdos de ensino. Mas envolve uma absorção  de aprendizagens valorativas muito  intensa.  O importante é que haja consciência deste processo  para que os protagonistas do  processo  pedagógico  não sejam manipulados por ideias que nem sempre gostariam de servir. O professor e o aluno não podem ser engolidos pelo ritual escolar.  Precisam ser sujeitos conscientes, definidos deste
ritual (VEIGA, 2000,153).


Ao agir sistematicamente na escola, o professor realiza seu trabalho. O trabalho é a identidade básica do ser humano, a sua essência, sendo a “intervenção intencional e consciente dos homens na realidade, elemento distintivo do homem dos outros animais” (RIOS 1993, p. 33).

Ora, o ato de agir sobre a natureza transformando-a em função das necessidades humanas é o que conhecemos com o nome de trabalho. Podemos, pois, dizer que a essência do homem é o trabalho. A essência humana não é, então, dada ao homem; não é uma dádiva divina ou natural; não é algo que precede a existência do homem. Ao contrário, a essência humana é produzida pelos próprios homens. O que o homem é, é-o pelo trabalho. A essência do homem é um feito humano. É um trabalho que se desenvolve, se aprofunda e se complexifica ao longo do tempo: é um processo histórico (SAVIANI, 2006. p. 35)

O homem constrói sua especificidade e se constrói enquanto ser histórico à medida que transcende o mundo natural pelo trabalho. Ao transcender a mera natureza (tudo aquilo que não depende de sua vontade e de sua ação), o homem ultrapassa o nível da necessidade e transita no âmbito da liberdade. A liberdade é, pois, o oposto do espontaneísmo, da necessidade natural; é algo construído pelo homem à medida que constrói sua própria humanidade (PARO, 1994. p. 441)

Mas agir sistematicamente não é suficiente para que haja o desenvolvimento de uma profissão com personalidade ou aperfeiçoamento da personalidade do professor conectada a uma profissão. Refiro-me à profissionalidade. Investigar, pois, o trabalho docente na perspectiva da profissionalidade implica compreender os professores como sujeitos que, agindo num espaço institucional dado, constroem nessa atividade sua vida e sua profissão. De acordo com o sociólogo francês Touraine (2004, 2007), o professor enquanto ator social pode ou não agir como sujeito. Neste sentido

O sujeito não é um indivíduo concreto. Um indivíduo pode ou não se comportar como sujeito. No centro, deve-se situar o vazio, não as normas; portanto, o ser humano na condição de sujeito em face de si mesmo. (...) capacidade de se olhar. (...) Se me deixo distrair, então todo o espaço interior é preenchido. É preciso que eu me afaste de minhas atividades, de minhas distrações, de meus deveres para definir
minha relação comigo. (TOURAINE, 2004, p.97).

Só nos tornamos plenamente sujeitos quando aceitamos como nosso ideal reconhecer-nos – e fazer-nos reconhecer enquanto indivíduos – como seres individuados, que defendem e constroem sua singularidade, e dando, através de nossos atos de resistência, um sentido a nossa existência (TOURAINE, 2007, p. 123)

O processo de construção do sujeito é dinâmico, pois é a partir das relações interpessoais, mediadas simbolicamente, que se constrói “sujeitos absolutamente únicos, com trajetórias pessoais, singulares e experiências particulares em sua relação com o mundo e, fundamentalmente, com as outras pessoas” (OLIVEIRA, 1992, p.80).
Os professores são atores que “(...) dão sentido e significado aos seus atos, e vivenciam sua função como uma experiência pessoal, construindo conhecimentos e uma cultura própria da profissão” (TARDIF E LESSARD, 2005, p. 38),. Nesse sentido, as dimensões do social e do psicológico se integram nas formas de viver o trabalho e de se identificar com a profissão.
Os estudos mais recentes sobre o trabalho dos professores mostram um redirecionamento do foco de análise: das discussões sobre os critérios definidores da profissão e dos processos de pauperização do professor, para a investigação da docência como atividade humana complexa, com características próprias, exercida por pessoas que interagem numa instituição escolar que também é única, diferente de todas as demais (CONTRERAS, 2002; TARDIF, 2002; TARDIF, LESSARD, 2005; PERRENOUD, 2002; VEIGA, 2008).
A docência é uma atividade profissional que se dá num espaço social historicamente construído, a instituição escolar, cujas normas e formas de organização se inserem num contexto sociopolítico mais amplo, que assim está presente na vida da escola. Neste espaço instituído, os professores se apropriam das formas de estar e agir na profissão, ao mesmo tempo em que interagem nesse ambiente, modificando e reconstruindo o espaço escolar em sua atividade cotidiana (DINIZ-PEREIRA, 2011). No entanto, os professores não tomam contato com a docência pelo simples ingresso na profissão. A construção da profissionalidade docente no espaço escolar é informada por concepções e representações da docência construídas antes do ingresso na profissão, na trajetória pessoal e escolar desses sujeitos.
Tardif e Raymond (2000) destacam a importância da escolarização inicial na construção dessas representações. Segundo os autores, antes de começarem a trabalhar, os professores já passaram longos anos imersos na escola e nesse processo de socialização escolar construíram uma bagagem de conhecimentos que tem grande permanência no tempo, atravessando, sem mudanças substanciais, os processos de formação inicial.
O ingresso na carreira e no espaço de socialização profissional, na instituição escolar, é marcado pelas tensões e contradições, conflitos, acordos e acomodações resultantes da assimilação dos valores e regras específicos da organização escolar. É nas relações intersubjetivas, entre sujeitos que têm diferentes trajetórias, objetivos e perspectivas, ocupam posições com níveis de poder desiguais, convivendo num espaço físico e simbólico, que as expectativas e papéis institucionalizados vão sendo ressignificados e reconstruídos, permitindo a emergência dos processos partilhados de significação que constituem a unidade de cada escola, orientando e dando sentido às ações de seus membros (SARMENTO, 1994).
De maneira geral, os professores aprimoram sua prática pedagógica ensinando e tentando imitar bons professores que tiveram.

Todos os professores foram alunos de outros professores e viveram mediações de valores e práticas pedagógicas. Absorveram visões de mundo, concepções epistemológicas, posições políticas e experiências didáticas. Através delas foram se formando e organizando, de forma consciente ou não, seus esquemas cognitivos e afetivos, que acabam dando suporte para sua futura docência (CUNHA, 2006, p.259).

Hoje, a afirmativa de que “ensinar se aprende ensinando” reflete uma visão ingênua e do senso-comum de que não é preciso se preparar para ser docente, pois essa é uma atividade prática para a qual não são necessários conhecimentos específicos, mas experiência, dom, vocação (ZABALZA, 2002). Essa percepção, entretanto, vem se modificando e o desenvolvimento da profissionalidade docente é um imperativo para a superação dos desgastes e da pauperização instalados ao longo dos últimos anos.
Compreendo, nessa perspectiva, que o trabalhador docente está, por vários aspectos, numa situação de ambivalência, vivenciando os desgastes da pauperização, ao mesmo tempo que busca a sua profissionalidade. Isso revela as possibilidades de um coletivo em formação, em luta para se constituir e se consolidar parte da classe trabalhadora, mas que vive uma situação de identidade social contraditória, muitas vezes de conformismo e alienação. Mesmo assim, práticas pedagógicas podem implementar os processos de criticidade e reflexividade no interior das salas de aulas.
O professor realiza um o trabalho de grande valor de uso, sendo remunerado para seu exercício na divisão social do trabalho. Os trabalhadores da educação são trabalhadores assalariados, sem propriedade dos meios de produção, possuindo parcial controle do processo de trabalho.
O professor deve vender sua força de trabalho e, portanto, possuir o conhecimento específico de sua área não basta para que exerça sua profissão, ou seja, o conhecimento não é o único instrumento de produção necessário. Seu viés de cientista e pesquisador não são suficientes para caracterizá-lo como docente. Fora da instituição escolar não há exercício da docência.
E neste contexto, considero relevante mencionar que os professores da rede estadual compõem uma das categorias profissionais mais homogêneas quanto ao nível de escolaridade. Afinal, o nível de escolarização no ensino superior é de quase 100% dos professores#. Este é um dos requisitos que contribui para a organização legal e corporativa e concede estatuto reconhecido socialmente. Infelizmente, o nível da qualidade dessa escolaridade nem sempre é compatível com a necessária prática coletiva, comprometida e ética no cotidiano escolar. E assim, muitos profissionais acabam atuando sozinhos, isolados, sem diálogo, tampouco, realizando a necessária discussão curricular e troca de ideias. Imaginam ser esta a forma de agir para não incomodar, nem serem incomodados.
Existem estudos realizados com professores (tanto aqueles que abordam o estresse como os que abordam as condições de trabalho e saúde) caracterizam a prática de ensino como um trabalho dotado de intensificação das relações interpessoais que mobiliza os chamados fatores psicossociais do trabalho docente (CODO, 1999; ESTEVE, 1999). A própria Organização Internacional do Trabalho - OIT - definiu as condições de trabalho para os professores ao reconhecer o lugar central que estes ocupam na sociedade, uma vez que são os responsáveis pelo preparo do cidadão para a vida (OIT, 1984).
Esteve (1999) sistematizou o debate sobre o conjunto de dificuldades e de constrangimentos profissionais que afetam o trabalho dos professores, usando o termo mal-estar docente para designá-los. A expressão mal-estar, segundo o autor, "é intencionalmente ambígua (...) sabemos que algo não vai bem, mas não somos capazes de definir o que não funciona e por quê" (ESTEVE, 1999, p.12).
Esteve (1999) enumera algumas consequências, como: sentimentos de desconcerto e insatisfação diante dos problemas reais da prática da educação, contradição com a imagem ideal que os professores queriam realizar; desenvolvimento de esquemas de inibição, como forma de cortar a implicação pessoal com o trabalho que se realiza; pedido de transferência como forma de fugir de situações de conflitivas; desejo manifestado de abandonar a docência (realizado ou não); absenteísmo como mecanismo de cortar a tensão acumulada; esgotamento, cansaço físico permanente; ansiedade como risco ou ansiedade de expectativa; estresse; depreciação de si, auto-culpabilização pela incapacidade de melhorar a educação; ansiedade, como estado permanente; neurose reativa; depressões.
Cansaço, estresse, doenças como o infarto, a hipertensão, a depressão apareceram nas principais queixas de saúde, porém, alguns professores se consideraram saudáveis, demonstrando a vergonha como ideologia defensiva, escondendo a ansiedade por se sentir doentes e incapacitados para o trabalho. Basta uma breve conversa com os professores para reconhecer que o aumento das exigências, da carga de trabalho impacta a saúde e o número de afastamentos por motivo de doença.
Temos que a exaustão emocional nada mais é do que a expressão do sofrimento que os trabalhadores sentem quando não conseguem dar mais de si mesmos a nível afetivo. Esgotam-se a energia e os recursos emocionais próprios,se sentem exauridos emocionalmente (VASQUES-MENEZES, CODO, MEDEIROS, 2006, p. 258).

Para esses mesmos autores , ao não encontrarem alternativas para atender as diferentes demandas com as quais se deparam os/as professores/as sentem-se esgotados/as e desenvolvem um sentimento de impotência que leva ao afastamento hipotético do trabalho, ou seja, a despersonalização “[...] que é o desenvolvimento de sentimentos e atitudes negativas com um certo endurecimento afetivo e coisificação ou materialização da relação, [que] surge neste caso como resposta ao sofrimento instalado” (p. 259).
Há muitos estudos sobre condições de trabalho e saúde de professores que comprovam a relação direta entre o aumento de fatores estressores no trabalho e níveis elevados de fadiga, alterações do sono, transtornos depressivos e consumo de medicamentos. No trabalho do docente, entre os fatores estressores de maior relevância encontram-se os relacionados ao ambiente de trabalho, conteúdo do trabalho, condições organizacionais, estabilidade no emprego, salário, relações sociais no trabalho, carga de trabalho, autonomia, reconhecimento e valorização profissional. Ou seja, são cada vez mais frequentes classes superlotadas, baixos salários, escassos recursos materiais e didáticos, excesso de carga horária, falta de participação nas políticas e planejamento institucionais. O professor tem, ainda, a obrigatoriedade de desempenhar inúmeras funções dentro do âmbito escolar além de ministrar aulas: disciplinador e solucionador de problemas sociais dos alunos, bem como conflitos ocasionados pela expectativa de pais, administradores e comunidade (GASPARINI, 2006; BATISTA, 2010; SOUZA, 2011).
Observa-se que os trabalhadores docentes se sentem obrigados a responder às novas exigências pedagógicas e administrativas, contudo, expressam sensação de insegurança e desamparo tanto do ponto de vista objetivo (faltam-lhes condições de trabalho adequadas) quanto do ponto de vista subjetivo (um exigente carga mental para solucionar problemas).
Segundo a Organização Internacional do Trabalho (OIT), a profissão docente é hoje considerada como uma das mais estressantes, uma profissão de risco. Refere-se também à presença da síndrome de burnout entre os professores (OIT, 1984).
A síndrome de burnout envolve três componentes: exaustão emocional (esgotamento e queda no empenho pela produtividade), despersonalização (aparecimento de sentimentos e atitudes negativos) e falta de envolvimento pessoal no trabalho (queda no desempenho, comprometendo o trabalho) (CODO, VASQUES-MENEZES, 1999).
O papel do professor extrapola a mediação do processo de conhecimento do aluno. Ampliou-se a atividade do profissional, a fim de garantir uma articulação entre a escola e a comunidade (o que é moralmente aceito). O professor, além de ensinar, precisa participar da gestão e do planejamento escolares, o que significa uma dedicação mais ampla, se estendendo às famílias e à comunidade. Pode-se dizer que o sistema de ensino transfere ao profissional a responsabilidade de cobrir as lacunas existentes na instituição, que estabelece mecanismos rígidos e redundantes de avaliação e se submete a um número de profissionais por vezes insuficiente (GASPARINI; BARRETO; ASSUNÇÃO, 2005; TAVARES, 2001). E é isto que não pode ser compreendido como fato natural, sem antes possibilitar que as condições de trabalho sejam compatíveis comas atividades exigidas dos docentes.
As atividades realizadas para além do ensino são, muitas vezes, desenvolvidas na casa dos professores, ocupando, assim, o tempo que seria reservado ao descanso, ao lazer e à família e que, muitas vezes, misturam-se às atividades privadas. Há pesquisas que demonstram isso claramente:

Mesmo fora da escola, os professores desempenham tarefas concretas relacionadas à docência, além de se preocuparem com os alunos. A preparação das aulas, por exemplo, acontece na maioria das vezes à noite, juntamente com outras atividades, como assistir a TV, ou mesmo orientar as tarefas escolares dos filhos, uma vez que parcela significativa de professores trabalha em dois turnos ou mais (na mesma escola ou em escolas diferentes). Há também a presença marcante do trabalho doméstico entre as professoras, que representa uma carga de trabalho agregada. Com isso, o tempo de descanso e de lazer e o espaço para a criação eram comprometidos [...] (DUARTE, 2008, p. 226-227).

Esse contingente de atividades e exigências aos professores, acarreta, pouco a pouco, um desgaste enorme e uma carga de sofrimento que vai se instalando ao longo de sua trajetória profissional. Mas, na atualidade, parece existir uma tendência de banir o sofrimento do mundo do trabalho e desconsiderá-lo uma dimensão contingente à produção. Dar visibilidade ao processo de transformação do sofrimento em adoecimento, no âmbito da gestão do trabalho, se faz importante à medida que ele explicita a existência de situações de dominação e resistência, que misturam prazer e dor, além do aumento da prescrição e consumo abusivos de medicação. É possível observar, no interior das organizações, o quanto a tristeza é, imediatamente, nomeada como depressão e o medo, como paranoia, apenas para citar alguns exemplos. Esse adoecimento não se faz sem consequências, uma vez que ele discrimina, estigmatiza e exclui. Além disso, abre espaço para a medicalização das manifestações do sofrimento nas empresas através da prescrição indiscriminada, principalmente, de antidepressivos e ansiolíticos (BRANT; MINAYO-GOMEZ, 2004, DEJOURS, 1992).
Assim, chama a atenção que, mesmo em contextos complexos e geradores desse “mal estar”, há personalidades que conseguem realizar o trabalho de modo profissional, superando as dificuldades imediatas. Pode-se caracterizar um comportamento resiliente. A atividade docente demanda a adoção de variadas atitudes, por vezes lançando mão de posturas criativas para fazer frente às situações práticas que implicam atividades interativas, entre professor e aluno, professor e profissionais da educação, familiares de alunos e etc. (TAVARES, 2001). Isto converge em desenvolver a capacidade de transformar dificuldades em desafio e aprendizagem.
Tavares afirma que o desenvolvimento de capacidades de resiliência nos sujeitos passa pela mobilização e ativação das suas capacidades de ser, estar, ter, poder e querer, ou seja, pela sua capacidade de autoregulação e auto-estima.

“Ajudar as pessoas a descobrir as suas capacidades, aceitá-las e confirmá-las positiva e incondicionalmente é, em boa medida, a maneira de as tornar mais confiantes e resilientes para enfrentar a vida do dia-a-dia por mais adversa e difícil que se apresente” (TAVARES, 2001, p.52).

Neste sentido que Tavares (2001) desenvolveu a tese de que a resiliência não deve ser apenas um atributo individual, mas pode estar presente nas instituições/organizações, gerando uma sociedade mais resiliente. Para ele, uma organização resiliente é uma organização inteligente, reflexiva, onde todas as pessoas são inteligentes, livres, responsáveis, competentes, e funcionam numa relação de confiança, empatia, solidariedade. “Trata-se de organizações vivas, dialéticas e dinâmicas cujo funcionamento tende a imitar o do próprio cérebro que é altamente democrático e resiliente” (TAVARES, 2001, p.60)
Algumas das estratégias possíveis para o desenvolvimento da resiliência, em especial no caso dos professores, encontrada neste mesmo autor são:
-Diálogo com a situação: pois favorece o desvelamento de aspectos implícitos e nem sempre contemplados da realidade divergente além de estimular a criação de novos marcos de referência.
-Autoconhecimento: as características do professor influenciam na forma de aprender e ensinar, influencia na construção do conhecimento e na constituição subjetiva dos alunos.
-Reflexão: que não consiste em um conjunto de procedimentos específicos e sim representa uma forma de encarar e responder aos problemas; isto em um processo reflexivo que favorece a busca de soluções.
-Flexibilidade: para diferentes formas de agir, nas distintas situações da realidade
Ressalta-se, então, que analisar os diversos autores e pesquisas sobre a resiliência parecem nos levar a concluir que a capacidade de amar, trabalhar, ter expectativas e projeto de vida - conseqüentemente, de dar um sentido a nossa existência - denota ser a base onde as habilidades humanas se apoiam para serem utilizadas diante das adversidades da vida – que certamente todos, em menor ou maior intensidade, teremos que enfrentar enquanto estivermos vivos. E isto é uma premissa básica para aqueles que trabalham com adolescentes, como é o caso dos professores da rede estadual de ensino.
Afinal:

A resiliência é a capacidade de responder de forma mais consistente aos desafios e dificuldades, de reagir com flexibilidade e capacidade de recuperação diante desses desafios e circunstâncias desfavoráveis, tendo uma atitude otimista, positiva e perseverante e mantendo um equilíbrio dinâmico durante e após os embates – uma característica de personalidade que, ativada e desenvolvida, possibilita ao sujeito superar-se e às pressões de seu mundo, desenvolver um autoconceito realista, autoconfiança e um senso de autoproteção que não desconsidera a abertura ao novo, à mudança, ao outro e à realidade subjacente (TAVARES, 2001, p.46).

Tavares (2001) apresenta ainda que o estresse /desestresse da sociedade ocidental causa constantes impactos nos indivíduos, seja pelo modelo de trabalho excessivo e estressante, seja pela pressão que o indivíduo sofre pelos modelos de sucesso e fracasso, seja por ter que atender a certos padrões e exigências sociais. Assim, refere que, para construirmos a resiliência, é necessário mudar a sociedade, tornando-a menos burocrática.
Esse autor também contribui quando afirma que o desenvolvimento de capacidades de resiliência nos sujeitos passa pela mobilização e ativação das suas capacidades de ser, estar, ter, poder e querer, ou seja, pela sua capacidade de autoregulação e autoestima. Ajudar as pessoas a descobrir as suas capacidades, aceitá-las e confirmá-las positiva e incondicionalmente é, em boa medida, a maneira de torná-las mais confiantes e resilientes para enfrentar a vida do dia-a-dia por mais adversa e difícil que se apresente. (TAVARES, 2001, p.52)
A conjunção de aspectos pessoais - resiliência - com aspectos sociais e políticos - trabalho, ação pedagógica, relações humanas - constituem a busca pelas condições adequadas de trabalho na escola pública. Há, mais que nunca, a necessita pela luta pelo espaço de trabalho decente. O “trabalho decente”, conceito formalizado pela OIT em 1999, sintetiza a missão histórica dessa instituição de promover oportunidades para que homens e mulheres - no caso da escola, para professores e professoras -  possam ter um trabalho produtivo e de qualidade, em condições de liberdade, equidade, segurança e dignidade humanas, sendo considerado condição fundamental para a superação da pobreza, a redução das desigualdades sociais, a garantia da governabilidade democrática e o desenvolvimento sustentável. Envolve os objetivos estratégicos da OIT (liberdade sindical; direito de negociação coletiva; eliminação do trabalho forçado; abolição efetiva do trabalho infantil; eliminação da discriminação em matéria de emprego e ocupação), além da promoção do emprego produtivo e de qualidade, da melhoria das condições de trabalho, do fortalecimento do diálogo social e da ampliação da proteção social (OIT, 2012).
De acordo, ainda, com a Organização Internacional do Trabalho (OIT), Trabalho Decente é um "trabalho adequadamente remunerado, exercido em condições de liberdade, equidade e segurança, capaz de garantir uma vida digna". Desta forma, o Trabalho Decente é uma condição fundamental para a superação da pobreza, a redução das desigualdades sociais, a garantia da governabilidade democrática e o desenvolvimento sustentável.
O elemento central do conceito de trabalho decente é a igualdade de oportunidades e de tratamento e o combate a todas as formas de discriminação.
Na atual sociedade, é imperativo que a sociedade e governos compreendam que os trabalhadores docentes tenham um trabalho decente, em condições e possibilidades, tendo em vista todo o processo de pauperização que a categoria desses trabalhadores vem sofrendo ao longo dos últimos anos, a qual trouxe, entre outros problemas, o adoecimento dos professores em função das exigências que extrapolam o âmbito pedagógico.
Afinal, quando se tem um trabalho decente é que os trabalhadores obtém uma quantidade de bens e serviços, por meio de seus rendimentos, que os torna dignos e suficientemente seguros para tomar decisões sobre como viver uma vida que eles valorizem.
A necessidade de luta pelo trabalho decente no interior das escolas estaduais se faz necessário tendo em vista que as frustrações geradas, as dificuldades nos tempos escolares, as características dos alunos e a burocracia das redes, bem como a fragmentação e a contradição produzida nas relações entre tempo profissional e tempo pessoal, trazem um desgaste que impedem que o professor realize melhor a sua atividade docente. Sabe-se que tais questões são oriundas das mudanças culturais e de valores sociais, já mencionadas anteriormente, bem como das pressões por desempenho e produtividade, da necessidade de atualização constante, flexibilidade social e didática e dos novos comportamentos das crianças, adolescentes e jovens. Tudo isso, acaba gerando tensões constantes no exercício profissional e tornando o ambiente de alta complexidade para atuar. Vai tornando-se insuportável executar tantas exigências e não ter retorno no mesmo patamar.


3. Considerações finais


Como o processo de ensino, resultado do trabalho docente, é construído e materializado pela ação do professor, torna-se cada vez mais evidente a necessidade de se criar espaços de reflexão e discussão, especialmente no interior das escolas, para fortalecer a ideia de pertença a um coletivo e também para que a voz do professor (GOODSON, apud NÓVOA, 1995) esteja mais presente no debate educativo. E isto não é dado ao trabalhador docente. É resultado de luta. E lutar implica, antes, fortalecer a identidade na profissão, construir consciência de classe e resistir às imposições que não dialogam com a realidade docente.
Os trabalhadores da educação pública estadual estão entre os mais volumosos e importantes grupos ocupacionais, tanto pelo seu número como pelo seu papel. Isto remete às questões do financiamento público da educação, da carreira e salário dos profissionais docentes, bem como das condições de infraestrutura necessária nas escolas, pois a melhor qualificação da educação passa também por esses aspectos, os quais não estão postos à altura das exigências que têm sido feitas às escolas e seus trabalhadores. A pauperização da profissão deve ser revertida. E revertida com profissionalismo, compromisso e responsabilidade.
Não dá para se manter o discurso de que a educação não precisa de mais verbas. Para um trabalho decente é necessário, sim, investimentos cada vez maiores por parte do Governo, a fim de melhorar a escola, o ensino e as condições de trabalho dos trabalhadores da educação.
Para isso, defendo a idéia de que é necessário,em nível de mantenedora, utilizar mais e melhor o conhecimento e a reflexão sobre as condições de trabalho dos professores, suas motivações, dificuldades, crises e mobilizações possíveis, considerando que esse conhecimento pode sustentar boas políticas de formação docente, de ação e de práticas de gestão, e assim, constituir processos de melhoria e, paulatinamente, a constituição de um trabalho decente que o coletivo de trabalhadores docentes merecem.
No interior da escola, os professores precisam exercitar mais o diálogo pedagógico que enriquece e concretiza a partilha dos anseios, das idéias e dos planos, bem como precisam construir pontes coletivas de experiências pedagógicas em prol da aprendizagem dos alunos. Se faz necessário o fomento à descoberta e à criatividade, o exercício da crítica e do raciocínio, o fortalecimento de vínculos pedagógicos e da amizade, visando a melhoria das relações sociais e do processo de ensino aprendizagem. Afinal, essa necessária coletividade é parte importante para o enfrentamento das cobranças dirigidas ao professor. Dele é esperado, seja por ele mesmo, seja pelos seus alunos, seja pelos seus pais ou por seus colegas, que responda aos anseios difusos dirigidos à escola. E nem sempre se tem todas as respostas. No entanto, é possível lidar com todas as perguntas por meio do posicionamento crítico e humanizador.
Vale ressaltar ainda que a reflexão sobre os novos perfis das crianças, adolescentes e jovens que estão atualmente na escola possibilita o conhecimento da situação social destes e a análise das representações dos agentes escolares (em especial seus preconceitos sobre estes). Tal reflexão certamente orientará a decisão sobre a melhor maneira de planejar o ensino e refletir sobre as relações que se estabelecem na escola e, portanto, construir uma escola onde esses alunos, já desprivilegiadas socialmente, continuem a todo custo sua escolarização e apropriem-se do saber socialmente organizado, mediado por um trabalhador consciente, crítico, reflexivo, ético e comprometido.
E esse conjunto de ações, sempre defendi, deve ser realizado no espaço de trabalho e no tempo do contrato do professor. Naquele tempo em que o professor deve estar na escola por prescrição legal. Caso contrário, acaba que cada vez mais o trabalho do professor vai se expandido para além do campo pedagógico, descaracterizando sua função precípua, maximizando o seu tempo de produção, sem o devido acompanhamento salarial, e tempo disponível para estudos individuais, participação em reuniões, grupos de discussões e debates, etc.
E na defesa do trabalho decente ao trabalhador docente, as questões ideiais e possíveis não são novas, mas devem ser reconfiguradas para as atuais conjunturas: salários compatíveis, dedicação exclusiva a uma única escola, tempo para planejamento didático e estudos, salas de aula e número de alunos adequados, etc com a plena convicção de que assim poderemos traçar caminhos para uma melhor educação escolar.
E é nesta direção que, ao almejar uma escola pública melhor, o investimento na ação pedagógica do professor tem, também, de levar em consideração a construção de mecanismos que favoreçam o crescimento pessoal e profissional desses importantes e essenciais sujeitos do ensino: os professores. E estes sujeitos, que se fazem autores, poderão conquistar seus sonhos e, fortalecidos pelo sentimento de resiliência, estarão mais bem preparado para as muitas adversidades que, certamente, precisarão enfrentar ao longo de sua ação pedagógica na escola. Contar com as condições para esse enfrentamento será, certamente, grande auxílio e moderador dessas adversidades. O trabalho decente, condição essencial, aponta para isso!


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