sexta-feira, 13 de novembro de 2009

Hora-Atividade: um debate sobre o que é legal e o que é real

Luiz Alberto de Vargas e Paulo Luiz Schmidt
Juízes do Trabalho no RS



É uma verdade simples e bastante conhecida que uma significativa parte do trabalho do professor é desempenhada fora da sala de aula, especialmente em preparação das classes ou na avaliação dos alunos. Entretanto, passa despercebida de nossa legislação, que estipula o salário do professor apenas por aula ministrada, ou seja, por hora-aula.
É verdade que nossas leis são antigas e não acompanharam as crescentes exigências que, presentemente, pedem aos professores um grau de preparação e dedicação desconhecido ao tempo em que o magistério, no mais das vezes, era apenas uma atividade diletante e complementar, e não uma complexa profissão, como ocorre nos dias de hoje. Para esse divórcio também contribuíram a pedagogia, então incipiente, bem assim os conteúdos menos exigentes e diversificados da época, que não demandavam maior tempo de preparação ou requeriam técnica ou método apurado de ensino. De fato, a concorrência intensa que se estabeleceu entre os estabelecimentos de ensino terminam por pressionar consideravelmente o professor, seja pelo número de alunos por classe (o que exige, por óbvio, maior trabalho tanto na exposição das aulas como na avaliação dos alunos), seja pelas demandas patronais de que o professor seja cada vez mais qualificado (ainda que nem sempre o empregador desempenhe a sua parte nos programas de qualificação). Além disso, o próprio mercado profissional cobra do professor atualização e aperfeiçoamento incessantes, o que, por sua vez, implica a revisão permanente dos métodos e planos de trabalho. Apesar de modificações substanciais, a lei não acompanhou tais mudanças e, pelo texto frio da lei, continua-se a pensar que a exposição das aulas se faz sem preparação prévia, que as avaliações dos alunos são orais e dentro do horário das classes ou que inexiste plano de estudos ou necessidade de constante atualização e aperfeiçoamento.
Conforme Emílio Gonçalves, em princípio a função docente compreende as seguintes tarefas afeitas ao professor, em decorrência do exercício do magistério:
1. regência das aulas, de acordo com os horários escolares;
2. organização dos programas da disciplina ou disciplinas a cargo do professor e o planejamento do curso e das aulas;
3. escrituração dos diários de classe;
4. correção dos trabalhos escolares;
5. correção das provas de verificação da aprendizagem e a atribuição das respectivas notas;
6. realização dos exames, correção das provas e a atribuição das respectivas notas;
7. participação nas bancas examinadoras;
8. comparecimento às reuniões do Conselho de Professores, de Departamentos, de Conselhos Departamentais, de Congregação e outras reuniões de caráter pedagógico, assim como a participação nas respectivas atividades e deliberações.
Ocorre que existem ainda muitas outras atividades que são exigidas do professor e que, em geral, não estão previstas originalmente no contrato de trabalho, quais sejam: entrevistas com pais de alunos; obrigação de participar de eventos culturais, recreativos e/ou desportivos; compromisso de produzir artigos científicos ou participar de simpósios ou cursos de formação, entre outras. Tais atividades, ainda que veladamente obrigatórias, são consideradas pelos empregadores como instrutivas ou meramente benéficas ao professor, o que se constitui em evidente equívoco. Como obriga-ções acessórias impostas ao profissional, dele demandam tempo que é subtraído da sua vida privada. E, como tempo extra despendido em favor do empregador, deve ser objeto de contraprestação extraordinária.
Já em relação às atividades tipicamente docentes, mas não desempenhadas nem na sala de aula nem no horário das classes, tradicional-mente tem sido entendido que não conferem ao professor um “plus” salarial, já que estão compreendidas na remuneração contratual-mente ajustada.
Assim, a compreensão da atividade do professor como integral e abrangente, ensejando o pagamento diferenciado do horário despendido fora das salas de aula, indica uma tendência inevitável a uma revisão de conceito já superado pela realidade Tal interpretação, desajustada com os tempos atuais, constitui verdadeira injustiça, pois transfere ao trabalhador toda a responsabilidade pela sua forma-ção imprescindível ao desempenho de sua atividade, dele exigindo esforço e tempo de trabalho não retribuídos pelo empregador. Hoje, quando já não são inco-muns classes com excesso de alunos, considerar que o trabalho de correção de dezenas de provas de alunos esteja contemplado na hora-aula contratada é não perceber uma grave injustiça, para dizer o mínimo. De outro lado, se considerarmos que, no mais das vezes, a periodicidade e a forma das avaliações (mensais e/ou dissertativas) é imposição da escola empregadora, fica ainda mais evidente que urge uma mudança de postura da classe empregadora, não só para corrigir essa distorção que já se mostra histórica, mas para dar coerência ao discurso da preocupação com a qualidade de ensino, que não pode ser debitada ao esforço de apenas uma das partes do processo ensino-aprendizagem.
A situação torna-se ainda mais clara quando ocorre, v.g., o aumento de alunos na classe ou, por determinação, o professor é transferido de disciplina, fatos que exigirão maior tempo extra-classe na preparação de aulas e avaliações. Ambas as hipóteses se afeiçoam e são passíveis de enquadramento ao conteúdo do art. 468 da CLT (que estabelece o princípio da inalterabilidade dos contratos individuais de trabalho), à medida que resta tipificada a alteração contratual unilateral e lesiva ao empregado, passível, portanto, de ressarcimento.
Assim, a compreensão da atividade do professor como integral e abrangente, ensejando o pagamento diferenciado do horário despendido fora das salas de aula, indica uma tendência inevitável a uma revisão de conceito já superado pela realidade e reconhecido há pelo menos duas décadas pelas principais universida-des privadas no nosso Estado e País. Parece absoluta-mente correto que se fale em hora-atividade, em contraposição à hora-aula, de forma a diferenciar perfeitamente as atividades desempenhadas pelo professor, de modo a implementar o elementar direito de que todo o tempo laborado pelo empregado em favor do empregador deve ser por ele retribuído. Neste sentido, é relevante destacar importante modificação legislativa ocorrida a partir da edição da Lei de Diretrizes e Bases, art. 67, inciso V, que assim dispõe:
Os sistemas de ensino promoverão a valorização dos profissionais da educação, assegurando-lhes, inclusive, nos termos dos estatutos e dos planos de carreira do magistério público:
(...)V - período reservado a estudos, planejamento e avaliação, incluído na carga de trabalho;”
A exigência de período da carga horária reservado àquelas atividades tradicionalmente realizadas “em casa”, passou a suscitar um importante debate dentro do Judiciário Trabalhista, mesmo que ainda tardio, cujos resultados já produziram enfoques e conclusões inovadoras, visualizados na nova jurisprudência que surge sobre este antigo e importante tema.
Já existem decisões judiciais, especialmente no TRT da 4ª Região, que entendem que, a partir da LDBN, existe base legal para o professor exigir das instituições de ensino a remuneração das horas-atividade, como na recente decisão sintetizada na ementa: “PROFESSORA. HORAS-ATIVIDADE. Considerando a existência de norma prevendo expressamente outras atividades além de ministrar aulas, elencadas no art. 13 da Lei nº 9.394/96 (LDB), tem-se que não há como ignorar o direito à remuneração pelo trabalho prestado, sob pena de impingir ao professor a obrigação de trabalho gratuito. Assim, o tempo despendido na preparação de aulas, correção de provas e atividades correlatas deve ter a remuneração calculada na forma do § 2º do art. 322 da CLT, aplicável analogicamente. Provimento negado.” (acórdão 00574.002/00-6 , TRT-4ª, 8ªTurma, Rel. Cleusa Regina Halfen, publicado em. 07/10/2002).
A complexidade temática que envolve o direito à remuneração da hora-atividade tem proporciona-do manifestações e decisões baseadas em aborda-gens das mais diversas, apontando, no entanto, para uma nítida convergência, qual seja: a de assegurar a remuneração do trabalho realizado, como reitera a Ementa: “PROFESSOR.JORNADA DE TRABALHO.HORA-ATIVIDADE- A remunera-ção do professor por hora-aula não abrange aquelas tarefas inerentes à função. Reconhecido direito dos substituídos terem 15% de sua carga horária destinada à preparação de aulas, avaliação e planejamento. Apelo parcialmente provido.” (Proc.TRT-4ª RO-01125.751/99-1-Rel. Juíza Maria Helena Mallmann Sulzbach-26.09.02)
Contudo, é prematuro chegar a uma conclusão a respeito, haja vista que a jurisprudência de nossos Tribunais ainda não se firmou num ou noutro sentido, mesmo porque a demanda de ações recla-matórias trabalhistas que versam sobre o tema da hora-atividade nas escolas privadas ainda é bastante pequena. De todo modo, é necessário que o caminho seja trilhado, seja pela via de ação judicial, pela modificação legislativa ou pela desejável via da negociação coletiva, encontrando-se, ao fim e ao cabo, uma solução para remediar a injustiça que persiste até o momento: o trabalho gratuito do professor fora da sala de aula.

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