Alexandro Muhlstedt
Uma
instituição
não
tem cara e não tem alma, não tem histórias...
Cara
e história têm pessoas
que ali trabalham.
E
são elas que lhe fornecem alma.
(Luiz
Fernando Veríssimo)
Não
há educação fora das sociedades humanas
e
não há homem no vazio.
(Paulo
Freire)
A
identidade é resultado a um só tempo estável e provisório,
individual e coletivo, subjetivo e objetivo, que, conjuntamente,
constroem os indivíduos e definem as instituições.
(Claude
Dubar)
É na escola que o professor
desenvolve seu trabalho por meio do exercício de sua profissão.
Nesse espaço assume a responsabilidade de trabalhar com o
conhecimento historicamente elaborado, situando-o sem neutralidade. A
prática profissional do professor não é a simples aplicação dos
saberes acadêmicos, mas, sim, a realização de um processo de
“filtração, onde eles (os saberes) são transformados em função
das exigências do trabalho” (TARDIF, 1999, p.17). E a prática
pedagógica do professor é concretizada quando realiza o processo de
ensino. Mas essa prática não é dada simplesmente, ela precisa ser
lapidada e construída por um processo de profissionalização,
sendo que é por meio da convivência no cotidiano escolar que o
professor vai constituindo sua identidade e concretizando essa
profissionalização. Nesse caso, “o termo profissionalização
indica o processo de formação de um sujeito numa profissão, que se
inicia com a formação inicial e atravessa todos os momentos de
formação continuada” (PENIN 2009, p. 25).
O professor tem uma atividade que
deriva do latim professus,
“aquele que declarou em público”, do verbo profitare,
“declarar publicamente, afirmar perante todos”. Os dicionários
(Aurélio, Luft, Michaelis) definem professor como “aquele que
professa ou ensina uma ciência, uma arte, uma técnica, uma
disciplina”. Trata-se, então, de um sujeito que se declara apto a
ensinar. E o processo de ensinar, ação desse profissional, situa-se
numa sociedade determinada, em contextos bem delimitados que
necessitam ser compreendidos e avaliados.
Nesse sentido, as condições do
contexto contribuem ao que se pode denominar como a competência
profissional do professor. Esta ocorre na práxis, ou seja, por meio
da ação concreta em seu fazer pedagógico. Não se é competente de
uma vez por todas, mas “ela (a competência) se amplia na
construção coletiva, na partilha de experiências, de reflexão”
(RIOS 2001, p.91). E sem prática, não há como conferir competência
a quem se denomina professor.
Ao realizar sua função com
competência, o professor realiza seu papel
social que é o de orientador, o do formador de seus alunos por meio
do conhecimento. Considerando o professor como sujeito de suas ações
não é mais possível associar a docência somente à vocação, ao
amor, à abnegação, à doação e à missão, vinculando o ensino
como transferência de informação e a aprendizagem, como o
recebimento e a armazenagem de informações. Para ser professor,
cumprindo seu papel social e construindo-se como sujeito, não basta
gostar de ensinar e dominar conhecimentos específicos de determinada
área e algumas habilidades técnicas. É preciso algo mais, é
preciso articular os conhecimentos elaborados na academia (formação
inicial) e as informações do mundo globalizado, com os
conhecimentos da prática (formação continuada e experiência).
Inclui-se aí a sensibilidade para refletir, atenta, crítica e
criteriosamente, as ações do cotidiano.
Em consequência, é possível
perceber que a identidade do professor vai sendo forjada através de
duas perspectivas: uma, a partir da formação adquirida no ensino
superior, em curso de licenciatura – a técnica, e a outra, pela
formação vivida na prática – a experiência.
O professor, enquanto técnico, tem em
sua trajetória de formação as instituições de ensino superior,
via de regra, que se apoiam no modelo de ‘racionalidade técnica’,
onde a resolução de problemas colocados pela prática está
relacionada ao domínio e à aplicação de teorias científicas
(BOLFER, 2008. p. 46). A racionalidade técnica na formação de
professores acaba por defender, simplesmente, a aplicação do
conhecimento e do método científico, ou seja, uma racionalidade
instrumental. Essa posição, porém, se depara com situações do
mundo real que frequentemente são complexas, singulares e
imprevisíveis, não apresentando estruturas bem delineadas, mas
caóticas e indeterminadas. Em contraposição a isso, nota-se a
exigência para a formação docente que leve em consideração uma
racionalidade prática, a qual supõe a existência de um professor
reflexivo que examina os resultados de suas ações (do ponto de
vista pessoal, acadêmico ou sócio-político).
Na racionalidade prática, o professor
vai aprendendo a ser professor e a como agir na ação. Nesse
processo de profissionalização o professor age também de acordo
com as representações de suas experiências como aluno, ora
imitando os bons professores, ora rejeitando ações pedagógicas
consideradas negativas ou inadequadas. Afinal, o professor já tem
certa experiência e uma espécie de leitura da docência pelos anos
vividos como aluno, na educação básica e no curso de licenciatura.
Assim, desenvolve, historicamente, padrões metodológicos que
combinam os seus conhecimentos acadêmicos e suas experiências
vivenciadas com os alunos, no cotidiano escolar. O conjunto de
saberes que explica suas ações e que o identifica na profissão –
construído pelo próprio professor – dimensiona a relação que o
professor estabelece entre sua formação e sua prática.
As
experiências docentes, que constituem a historicidade do sujeito,
quando valorizadas, possibilitam, no coletivo, refletir e recriar
novos conhecimentos. Como
consequência, o docente vai forjando sua identidade e cristalizando
ações, posturas e modos de pensar o mundo. Afinal, somente a
formação técnica (acadêmica) do professor não é suficiente para
sua ação pedagógica na docência, tendo em vista que os
conhecimentos elaborados a partir da prática são fundamentais para
a constituição de sua identidade, sendo que já há um conjunto de
procedimentos éticos e morais que precedem a atuação do professor,
bem como o contexto social no qual a unidade escolar está situada.
Sobre isso, Berger e Luckmann (1985) explicam que a identidade se
configura como um elemento chave da subjetividade e da sociedade,
formando-se e sendo remodelada através dos processos e relações
sociais. As identidades são singulares ao sujeito e produzidas a
partir de interações do indivíduo, da consciência e da estrutura
social na qual este está inserido, sendo a “identidade um fenômeno
que deriva da dialética entre um indivíduo e a sociedade” (p.
230).
Pimenta (2012, p. 22) alerta para “a
natureza do trabalho docente (que) é ensinar como contribuição ao
processo de humanização dos alunos historicamente situados.”
Nesse sentido, a atuação competente do professor exige deste os
conhecimentos constituídos em sua formação inicial e os
conhecimentos que são elaborados em sua prática cotidiana.
Essa prática é construída pelas vivências cotidianas na sala de
aula e apropriação dos modos de agir da profissão que incluem
procedimentos éticos, morais, pedagógicos e sociais. Essa interação
possibilita o desenvolvimento pessoal e social do sujeito.
A identidade pessoal e a identidade
construída coletivamente são essenciais para definir a identidade
profissional do indivíduo. A esse respeito Pimenta (1997, p. 07)
define que a identidade profissional “[...] se
constrói a partir da significação social da profissão e, também,
pelo significado que cada professor, enquanto ator e autor confere à
atividade docente de situar-se no mundo, de sua história de vida, de
suas representações, de seus saberes, de suas angústias e anseios,
do sentido que tem em sua vida: o ser professor”.
A identidade docente constitui-se
então numa construção que envolve o professor em sua
individualidade, mas que o envolve, também, como ser histórico e
social. Nas reflexões de Dubar (2005), a constituição da
identidade é resultante de diferentes socializações, revelando-se
produto inacabado marcado por sucessivas transformações. No
que diz respeito à construção da identidade profissional de
docentes, Gatti (1996) alerta para
a necessidade de perceber a ação tanto dos sujeitos construtores
quanto das circunstâncias em que tal construção ocorre.
Essa identidade
profissional, expressão inspirada nos trabalhos desenvolvidos por
Dubar (2005), pode ser empregada não somente como a maneira
socialmente reconhecida pelos indivíduos de se identificar uns aos
outros no campo das atividades remuneradas, mas também, e em
especial, como a projeção que os indivíduos fazem de si no futuro,
como a antecipação de uma trajetória de emprego a ser viabilizada
por certos investimentos na formação. Não se trata simplesmente da
escolha de uma profissão ou da obtenção de um certo diploma, mas
da construção de estratégias de identificação, que colocam em
perspectiva a imagem de si, a apreciação de suas próprias aptidões
e capacidades, a realização de seus desejos.
Afinal, ao ingressar na
profissão docente, o sujeito já tem diante de si um universo de
dispositivos legais e regulamentares que delineiam seu estatuto
profissional e definem os termos de troca entre
tempo e salário. São as legislações prescritas que determinam os
modos de atuação na prática pedagógica do professor. Uma dessas
leis é a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB
9394/96). À luz da legislação federal, todos aqueles profissionais
de Educação Escolar, em particular os das redes oficiais de ensino,
que ingressam no serviço público através de concurso público de
provas e títulos são, portanto, detentores de cargos públicos e,
por isso, têm incumbências enumeradas ou responsabilidades
explicitadas pelo Estado.
Em seu artigo 13 a LDB estabelece as
incumbências aos docentes que são: participar da elaboração da
proposta pedagógica do estabelecimento de ensino; elaborar e cumprir
plano de trabalho, segundo a proposta pedagógica do estabelecimento
de ensino; zelar pela aprendizagem dos alunos; estabelecer
estratégias de recuperação para os alunos de menor rendimento;
ministrar os dias letivos e horas-aula estabelecidos, além de
participar integralmente dos períodos dedicados ao planejamento, à
avaliação e ao desenvolvimento profissional; colaborar com as
atividades de
articulação da escola com as famílias e a comunidade.
Nesse artigo da LDB é possível
perceber três componentes principais que atuam na constituição da
identidade docente: 1 – posicionamento do professor como aquele a
quem incumbe zelar pela aprendizagem do aluno - inclusive daqueles
com ritmos diferentes de aprendizagem tomando como referência, na
definição de suas responsabilidades profissionais, o direito de
aprender do aluno, o que reforça a responsabilidade do professor com
o sucesso na aprendizagem do aluno; 2 - associação do exercício da
autonomia do professor, na execução de um trabalho próprio, ao
trabalho coletivo de elaboração da proposta pedagógica da escola e
3 – ampliação da responsabilidade do professor para além da sala
de aula, colaborando na articulação entre escola e a comunidade.
Ainda em referência à legislação
vigente, de acordo com o artigo 82 da Lei Complementar 007/1977, que
dispõe sobre o Estatuto do Magistério do Estado do Paraná, todo
professor “tem o dever constante de considerar a relevância social
de suas atribuições, cabendo-lhe manter conduta moral, funcional e
profissional adequada à dignidade do Magistério”, apresentando um
conjunto de normas a serem observadas pelos docentes em sua ação
pedagógica na escola pública. Vale ressaltar que esta lei foi
implantada em um contexto de restrição de liberdades democráticas
e forte intervencionismo político (Ditadura Militar), ficando
bastante evidenciados os preceitos morais e políticos daquele
momento histórico.
Essas
incumbências, articuladas a outros elementos mais particulares da
unidade escolar, como o Projeto Político Pedagógico, o Regimento
Escolar e o Regulamento Interno compõem as obrigações, normas e
deveres do trabalho
prescrito do professor, sendo estes “aspectos que antecedem a
realização do trabalho e que os professores precisam levar em
consideração para desenvolvê-lo” (ALVES, 2010. p. 149).
No entanto, em se tratando do que
ocorre no cotidiano escolar, é comum observar que a atividade
docente de planejar, estudar e organizar o ensino confundem-se com as
atividades de compreender como o aluno aprende, vencer a falta de
motivação do aluno, gerenciar conflitos, fazer cursos, preencher
documentos, etc. Tudo isso contribui para a elaboração de formas de
perceber a escola e de como a identidade docente vai se constituindo.
Nota-se que na construção da identidade do professor tem havido,
por falta de análise mais apurada, um certo empobrecimento
do conteúdo do seu trabalho, tendo em vista ser comum o professor
deparar-se, nas diversas realidades escolares, com atividades de
resolução de questões acessórias ou secundárias em detrimento
das essenciais. De certo modo, o professor se torna gestor dos
conflitos alheios e vítimas de seus próprios conflitos,
dificultando que a reflexão de sua ação, na sua ação, ocorra de
modo adequado. O cotidiano escolar, repleto de atividades
desgastantes, consomem tempo e energia, não possibilitando que o
professor realize uma reflexão crítica sobre a própria atuação.
Quando se observa esse cotidiano do
trabalho do professor verifica-se que este está imerso em atividades
escolares com os alunos que parecem prolongamento dos cuidados da
família, protegendo os mais fracos e desvalidos, ocupando o tempo
ocioso das ruas, atendendo as necessidades básicas (através da
alimentação, das merendas, bolsa-escola), e, eventualmente,
provendo conhecimentos e formação cultural. Com isto, pode-se dizer
que aspectos importantes na relação educacional e docente vem
sofrendo modificações. A realidade de trabalho na escola vem
mudando, assim como a própria escola. Afinal, esta já não é mais
a mesma como há algumas décadas, assim como os alunos, que
depositam outras expectativas e atribuem outros valores à
instituição.
Por outro lado,
como destaca Enguita (1991) “[...] os
educadores podem ser mártires, mas isso não garante que sejam
santos”, pois o funcionamento do ensino público, somada à
relativa autonomia de cada docente no exercício de seu trabalho
permite que seus rendimentos e esforços individuais se movam em
graus de grande amplitude. As atitudes e os comportamentos do
professor, explica o autor, não são iguais, podendo ir desde uma
alta preocupação com seu trabalho, um desejo constante de
atualização, uma elevada responsabilidade etc. até a passividade,
a rotina e a aplicação da lei do menor esforço mais absolutas. Há
ainda, professores que preferem trabalhar apenas o mínimo,
conformando-se em receber pouco, em troca de não dar mais. Com esse
comportamento, degradam a imagem de sua categoria e cerceiam as
oportunidades daqueles que trabalham mais duramente sem ver
reconhecido o valor de seu trabalho.
Enguita (1991, p. 60) ainda considera
que “[...] um
setor do professorado encontra em sua vocação e responsabilidade
estímulo suficiente para render adequadamente em seu trabalho; para
estes, o problema é simplesmente de justiça: que seu bom trabalho
seja reconhecido e recompensado. A questão é que a organização do
corpo docente, como a de qualquer outro, não pode estar baseada na
presunção da boa vontade individual e carecer de meios para atuar
quando esta não exista; ao contrário, deve estar organizada à
prova da pior vontade, ou da falta de qualquer vontade, e contar com
os meios para recompensar a boa e, onde não exista, criá-la ou
aproximar-se dos mesmos resultados através de outras motivações”.
Por isso, é
importante questionar: como construir
uma identidade docente que seja científica, educadora e política?
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