terça-feira, 14 de janeiro de 2014

IMAGENS DA DOCÊNCIA: O professor e a sua identidade

Alexandro Muhlstedt

Uma instituição não tem cara e não tem alma, não tem histórias...
Cara e história têm pessoas que ali trabalham.
E são elas que lhe fornecem alma.
(Luiz Fernando Veríssimo)


Não há educação fora das sociedades humanas
e não há homem no vazio.
(Paulo Freire)

A identidade é resultado a um só tempo estável e provisório, individual e coletivo, subjetivo e objetivo, que, conjuntamente, constroem os indivíduos e definem as instituições.

(Claude Dubar)

É na escola que o professor desenvolve seu trabalho por meio do exercício de sua profissão. Nesse espaço assume a responsabilidade de trabalhar com o conhecimento historicamente elaborado, situando-o sem neutralidade. A prática profissional do professor não é a simples aplicação dos saberes acadêmicos, mas, sim, a realização de um processo de “filtração, onde eles (os saberes) são transformados em função das exigências do trabalho” (TARDIF, 1999, p.17). E a prática pedagógica do professor é concretizada quando realiza o processo de ensino. Mas essa prática não é dada simplesmente, ela precisa ser lapidada e construída por um processo de profissionalização, sendo que é por meio da convivência no cotidiano escolar que o professor vai constituindo sua identidade e concretizando essa profissionalização. Nesse caso, “o termo profissionalização indica o processo de formação de um sujeito numa profissão, que se inicia com a formação inicial e atravessa todos os momentos de formação continuada” (PENIN 2009, p. 25).
O professor tem uma atividade que deriva do latim professus, “aquele que declarou em público”, do verbo profitare, “declarar publicamente, afirmar perante todos”. Os dicionários (Aurélio, Luft, Michaelis) definem professor como “aquele que professa ou ensina uma ciência, uma arte, uma técnica, uma disciplina”. Trata-se, então, de um sujeito que se declara apto a ensinar. E o processo de ensinar, ação desse profissional, situa-se numa sociedade determinada, em contextos bem delimitados que necessitam ser compreendidos e avaliados.
Nesse sentido, as condições do contexto contribuem ao que se pode denominar como a competência profissional do professor. Esta ocorre na práxis, ou seja, por meio da ação concreta em seu fazer pedagógico. Não se é competente de uma vez por todas, mas “ela (a competência) se amplia na construção coletiva, na partilha de experiências, de reflexão” (RIOS 2001, p.91). E sem prática, não há como conferir competência a quem se denomina professor.
Ao realizar sua função com competência, o professor realiza seu papel social que é o de orientador, o do formador de seus alunos por meio do conhecimento. Considerando o professor como sujeito de suas ações não é mais possível associar a docência somente à vocação, ao amor, à abnegação, à doação e à missão, vinculando o ensino como transferência de informação e a aprendizagem, como o recebimento e a armazenagem de informações. Para ser professor, cumprindo seu papel social e construindo-se como sujeito, não basta gostar de ensinar e dominar conhecimentos específicos de determinada área e algumas habilidades técnicas. É preciso algo mais, é preciso articular os conhecimentos elaborados na academia (formação inicial) e as informações do mundo globalizado, com os conhecimentos da prática (formação continuada e experiência). Inclui-se aí a sensibilidade para refletir, atenta, crítica e criteriosamente, as ações do cotidiano.
Em consequência, é possível perceber que a identidade do professor vai sendo forjada através de duas perspectivas: uma, a partir da formação adquirida no ensino superior, em curso de licenciatura – a técnica, e a outra, pela formação vivida na prática – a experiência.
O professor, enquanto técnico, tem em sua trajetória de formação as instituições de ensino superior, via de regra, que se apoiam no modelo de ‘racionalidade técnica’, onde a resolução de problemas colocados pela prática está relacionada ao domínio e à aplicação de teorias científicas (BOLFER, 2008. p. 46). A racionalidade técnica na formação de professores acaba por defender, simplesmente, a aplicação do conhecimento e do método científico, ou seja, uma racionalidade instrumental. Essa posição, porém, se depara com situações do mundo real que frequentemente são complexas, singulares e imprevisíveis, não apresentando estruturas bem delineadas, mas caóticas e indeterminadas. Em contraposição a isso, nota-se a exigência para a formação docente que leve em consideração uma racionalidade prática, a qual supõe a existência de um professor reflexivo que examina os resultados de suas ações (do ponto de vista pessoal, acadêmico ou sócio-político).
Na racionalidade prática, o professor vai aprendendo a ser professor e a como agir na ação. Nesse processo de profissionalização o professor age também de acordo com as representações de suas experiências como aluno, ora imitando os bons professores, ora rejeitando ações pedagógicas consideradas negativas ou inadequadas. Afinal, o professor já tem certa experiência e uma espécie de leitura da docência pelos anos vividos como aluno, na educação básica e no curso de licenciatura. Assim, desenvolve, historicamente, padrões metodológicos que combinam os seus conhecimentos acadêmicos e suas experiências vivenciadas com os alunos, no cotidiano escolar. O conjunto de saberes que explica suas ações e que o identifica na profissão – construído pelo próprio professor – dimensiona a relação que o professor estabelece entre sua formação e sua prática.
As experiências docentes, que constituem a historicidade do sujeito, quando valorizadas, possibilitam, no coletivo, refletir e recriar novos conhecimentos. Como consequência, o docente vai forjando sua identidade e cristalizando ações, posturas e modos de pensar o mundo. Afinal, somente a formação técnica (acadêmica) do professor não é suficiente para sua ação pedagógica na docência, tendo em vista que os conhecimentos elaborados a partir da prática são fundamentais para a constituição de sua identidade, sendo que já há um conjunto de procedimentos éticos e morais que precedem a atuação do professor, bem como o contexto social no qual a unidade escolar está situada. Sobre isso, Berger e Luckmann (1985) explicam que a identidade se configura como um elemento chave da subjetividade e da sociedade, formando-se e sendo remodelada através dos processos e relações sociais. As identidades são singulares ao sujeito e produzidas a partir de interações do indivíduo, da consciência e da estrutura social na qual este está inserido, sendo a “identidade um fenômeno que deriva da dialética entre um indivíduo e a sociedade” (p. 230).
Pimenta (2012, p. 22) alerta para “a natureza do trabalho docente (que) é ensinar como contribuição ao processo de humanização dos alunos historicamente situados.” Nesse sentido, a atuação competente do professor exige deste os conhecimentos constituídos em sua formação inicial e os conhecimentos que são elaborados em sua prática cotidiana. Essa prática é construída pelas vivências cotidianas na sala de aula e apropriação dos modos de agir da profissão que incluem procedimentos éticos, morais, pedagógicos e sociais. Essa interação possibilita o desenvolvimento pessoal e social do sujeito.
A identidade pessoal e a identidade construída coletivamente são essenciais para definir a identidade profissional do indivíduo. A esse respeito Pimenta (1997, p. 07) define que a identidade profissional “[...] se constrói a partir da significação social da profissão e, também, pelo significado que cada professor, enquanto ator e autor confere à atividade docente de situar-se no mundo, de sua história de vida, de suas representações, de seus saberes, de suas angústias e anseios, do sentido que tem em sua vida: o ser professor”.
A identidade docente constitui-se então numa construção que envolve o professor em sua individualidade, mas que o envolve, também, como ser histórico e social. Nas reflexões de Dubar (2005), a constituição da identidade é resultante de diferentes socializações, revelando-se produto inacabado marcado por sucessivas transformações. No que diz respeito à construção da identidade profissional de docentes, Gatti (1996) alerta para a necessidade de perceber a ação tanto dos sujeitos construtores quanto das circunstâncias em que tal construção ocorre.
Essa identidade profissional, expressão inspirada nos trabalhos desenvolvidos por Dubar (2005), pode ser empregada não somente como a maneira socialmente reconhecida pelos indivíduos de se identificar uns aos outros no campo das atividades remuneradas, mas também, e em especial, como a projeção que os indivíduos fazem de si no futuro, como a antecipação de uma trajetória de emprego a ser viabilizada por certos investimentos na formação. Não se trata simplesmente da escolha de uma profissão ou da obtenção de um certo diploma, mas da construção de estratégias de identificação, que colocam em perspectiva a imagem de si, a apreciação de suas próprias aptidões e capacidades, a realização de seus desejos.
Afinal, ao ingressar na profissão docente, o sujeito já tem diante de si um universo de dispositivos legais e regulamentares que delineiam seu estatuto profissional e definem os termos de troca entre tempo e salário. São as legislações prescritas que determinam os modos de atuação na prática pedagógica do professor. Uma dessas leis é a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB 9394/96). À luz da legislação federal, todos aqueles profissionais de Educação Escolar, em particular os das redes oficiais de ensino, que ingressam no serviço público através de concurso público de provas e títulos são, portanto, detentores de cargos públicos e, por isso, têm incumbências enumeradas ou responsabilidades explicitadas pelo Estado.
Em seu artigo 13 a LDB estabelece as incumbências aos docentes que são: participar da elaboração da proposta pedagógica do estabelecimento de ensino; elaborar e cumprir plano de trabalho, segundo a proposta pedagógica do estabelecimento de ensino; zelar pela aprendizagem dos alunos; estabelecer estratégias de recuperação para os alunos de menor rendimento; ministrar os dias letivos e horas-aula estabelecidos, além de participar integralmente dos períodos dedicados ao planejamento, à avaliação e ao desenvolvimento profissional; colaborar com as atividades de articulação da escola com as famílias e a comunidade.
Nesse artigo da LDB é possível perceber três componentes principais que atuam na constituição da identidade docente: 1 – posicionamento do professor como aquele a quem incumbe zelar pela aprendizagem do aluno - inclusive daqueles com ritmos diferentes de aprendizagem tomando como referência, na definição de suas responsabilidades profissionais, o direito de aprender do aluno, o que reforça a responsabilidade do professor com o sucesso na aprendizagem do aluno; 2 - associação do exercício da autonomia do professor, na execução de um trabalho próprio, ao trabalho coletivo de elaboração da proposta pedagógica da escola e 3 – ampliação da responsabilidade do professor para além da sala de aula, colaborando na articulação entre escola e a comunidade.
Ainda em referência à legislação vigente, de acordo com o artigo 82 da Lei Complementar 007/1977, que dispõe sobre o Estatuto do Magistério do Estado do Paraná, todo professor “tem o dever constante de considerar a relevância social de suas atribuições, cabendo-lhe manter conduta moral, funcional e profissional adequada à dignidade do Magistério”, apresentando um conjunto de normas a serem observadas pelos docentes em sua ação pedagógica na escola pública. Vale ressaltar que esta lei foi implantada em um contexto de restrição de liberdades democráticas e forte intervencionismo político (Ditadura Militar), ficando bastante evidenciados os preceitos morais e políticos daquele momento histórico.
Essas incumbências, articuladas a outros elementos mais particulares da unidade escolar, como o Projeto Político Pedagógico, o Regimento Escolar e o Regulamento Interno compõem as obrigações, normas e deveres do trabalho prescrito do professor, sendo estes “aspectos que antecedem a realização do trabalho e que os professores precisam levar em consideração para desenvolvê-lo” (ALVES, 2010. p. 149).
No entanto, em se tratando do que ocorre no cotidiano escolar, é comum observar que a atividade docente de planejar, estudar e organizar o ensino confundem-se com as atividades de compreender como o aluno aprende, vencer a falta de motivação do aluno, gerenciar conflitos, fazer cursos, preencher documentos, etc. Tudo isso contribui para a elaboração de formas de perceber a escola e de como a identidade docente vai se constituindo. Nota-se que na construção da identidade do professor tem havido, por falta de análise mais apurada, um certo empobrecimento do conteúdo do seu trabalho, tendo em vista ser comum o professor deparar-se, nas diversas realidades escolares, com atividades de resolução de questões acessórias ou secundárias em detrimento das essenciais. De certo modo, o professor se torna gestor dos conflitos alheios e vítimas de seus próprios conflitos, dificultando que a reflexão de sua ação, na sua ação, ocorra de modo adequado. O cotidiano escolar, repleto de atividades desgastantes, consomem tempo e energia, não possibilitando que o professor realize uma reflexão crítica sobre a própria atuação.
Quando se observa esse cotidiano do trabalho do professor verifica-se que este está imerso em atividades escolares com os alunos que parecem prolongamento dos cuidados da família, protegendo os mais fracos e desvalidos, ocupando o tempo ocioso das ruas, atendendo as necessidades básicas (através da alimentação, das merendas, bolsa-escola), e, eventualmente, provendo conhecimentos e formação cultural. Com isto, pode-se dizer que aspectos importantes na relação educacional e docente vem sofrendo modificações. A realidade de trabalho na escola vem mudando, assim como a própria escola. Afinal, esta já não é mais a mesma como há algumas décadas, assim como os alunos, que depositam outras expectativas e atribuem outros valores à instituição.
Por outro lado, como destaca Enguita (1991) “[...] os educadores podem ser mártires, mas isso não garante que sejam santos”, pois o funcionamento do ensino público, somada à relativa autonomia de cada docente no exercício de seu trabalho permite que seus rendimentos e esforços individuais se movam em graus de grande amplitude. As atitudes e os comportamentos do professor, explica o autor, não são iguais, podendo ir desde uma alta preocupação com seu trabalho, um desejo constante de atualização, uma elevada responsabilidade etc. até a passividade, a rotina e a aplicação da lei do menor esforço mais absolutas. Há ainda, professores que preferem trabalhar apenas o mínimo, conformando-se em receber pouco, em troca de não dar mais. Com esse comportamento, degradam a imagem de sua categoria e cerceiam as oportunidades daqueles que trabalham mais duramente sem ver reconhecido o valor de seu trabalho.
Enguita (1991, p. 60) ainda considera que “[...] um setor do professorado encontra em sua vocação e responsabilidade estímulo suficiente para render adequadamente em seu trabalho; para estes, o problema é simplesmente de justiça: que seu bom trabalho seja reconhecido e recompensado. A questão é que a organização do corpo docente, como a de qualquer outro, não pode estar baseada na presunção da boa vontade individual e carecer de meios para atuar quando esta não exista; ao contrário, deve estar organizada à prova da pior vontade, ou da falta de qualquer vontade, e contar com os meios para recompensar a boa e, onde não exista, criá-la ou aproximar-se dos mesmos resultados através de outras motivações”.
Por isso, é importante questionar: como construir uma identidade docente que seja científica, educadora e política?

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ALVES, W. E. O trabalho dos professores: saberes, valores, atividade. Campinas: Papirus, 2010.
BERGER, P. L. ; LUCKMANN, T. A construção social da realidade: tratado de sociologia do conhecimento. 6 ed. Petrópolis: Vozes, 1985.
BOLFER. M. M. M. de O. Reflexões sobre prática docente: estudo de caso sobre formação continuada de professores universitários. 237 f. Tese de Doutorado em Educação da Universidade Metodista de Piracicaba, Piracicaba, 2008. (mimeo)
BRASIL. Lei de Diretrizes e Bases da Educação: Lei nº 9.394/96 – 24 de dez. 1996. Estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. Brasília, 1998.
DUBAR, C. A socialização: construção das identidades sociais e profissionais. São Paulo: Martins Afonso, 2005.
ENGUITA, M.F. A ambiguidade da docência: entre o profissionalismo e a proletarização. Revista Teoria & Educação, Porto Alegre, n. 4, p. 41-61, 1991.
GATTI, B. Os professores e suas identidades: o desvelamento da heterogeneidade. Cadernos de pesquisa, São Paulo, n.98, p. 85-90, ago. 1996.
PARANÁ. Lei Complementar 007/1977 – Estatuto do Magistério, 22 de dezembro de 1976. Dispõe sobre o Estatuto do Magistério Público do Ensino de 1º e 2º graus, de que trata a Lei Federal n.º 5.692, de 11 de agosto de 1971, e dá outras providências. DIOE: 13/01/1977.
PENIN, S; Profissão docente e contemporaneidade. In ARANTES, V. A. (Org.). Profissão docente: pontos e contrapontos. São Paulo: Summus, 2009. p. 16-39.
PIMENTA, S. G. Saberes pedagógicos e atividade docente. 8 ed. São Paulo: Cortez, 2012.
______. Formação de professores: saberes da docência e identidade do professor. Nuances, vol III, Presidente Prudente, 1997, p.05 – 14.
PLACCO, V. M. N. de S. Perspectivas e dimensões da formação e do trabalho do professor. In: Simpósio: A formação docente sob diversos olhares e o compromisso com a inclusão social, 2006.
RIOS, T. A. Ética e Competência. São Paulo: Cortez, 1993.
SAVIANI, D. Pedagogia histórico-crítica: Primeiras aproximações. Polêmicas do nosso tempo. 7. ed. São Paulo. Autores associados, 2000.
TARDIF, M; LESSARD, C. O trabalho docente: elementos para uma teoria da docência como profissão de interações humanas. 7 ed. Petrópolis: Vozes, 2012.


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