Alexandro Muhlstedt
A docência é um processo complexo que supõe uma compreensão da realidade concreta da sociedade, da educação, da escola, do aluno, do ensino aprendizagem, do saber, bem como um competente repensar e recriar do fazer na área da educação, em suas complexas relação e com a sociedade.
A docência é um processo complexo que supõe uma compreensão da realidade concreta da sociedade, da educação, da escola, do aluno, do ensino aprendizagem, do saber, bem como um competente repensar e recriar do fazer na área da educação, em suas complexas relação e com a sociedade.
(Ildeu
Coelho)
Nosso
mundo é um mundo uno.
Mas
é um mundo dilacerado.
(Roger
Garauday)
Ser
professor é transforma o discente em sujeito do seu tempo.
(Alfio
Brandemburg)
O trabalho é a identidade básica do
ser humano, podendo ser definido como “[...] a intervenção
intencional e consciente dos homens na realidade, elemento distintivo
do homem dos outros animais” (RIOS 1993, p. 33). Saviani (2006)
explica que “a essência
humana não é, então, dada ao homem; não é uma dádiva divina ou
natural; não é algo que precede a existência do homem. Ao
contrário, a essência humana é produzida pelos próprios homens. O
que o homem é, é-o pelo trabalho. A essência do homem é
um feito humano. É um trabalho que se desenvolve, se aprofunda e se
complexifica ao longo do tempo: é um processo histórico” (p. 35).
A ação sistemática na escola designa, então, o que se pode chamar
de trabalho do professor. É a escola o local primeiro onde a ação
docente, junto aos alunos, materializa o ensino. Mas que tipo de
trabalho é esse?
Saviani
(1991, p. 20) esclarece isso, explicando que a educação é
um trabalho, situando-se na categoria do trabalho não-material, como
produção de ideias, conceitos, valores. Trata-se, em última
instância, “da produção do saber, seja do saber sobre a
natureza, seja do saber sobre a cultura, isto é, o conjunto da
produção humana”. Nessa produção não-material, o ato de
produzir e o ato de consumir imbricam-se, diferenciando-se, por
exemplo, de atividades – como a produção de livros e objetos de
arte – em que o produto se separa do produtor, havendo um intervalo
entre produção e consumo.
Ao trabalhar, concretizando o ato de
ensinar, o professor depende, dentre outras coisas, das condições
de trabalho. Tais condições
contribuem para a construção da identidade docente e suas variantes
são fatores importantes para a formação daquilo que ocorre na
prática. Saviani (2008, p. 43) assevera que quando são precárias,
“essas condições neutralizam a ação dos professores”, mesmo
que estes sejam bem formados (conhecimentos acadêmicos e técnicos).
De modo geral, ilustram essas condições precárias as salas
de aula lotadas, baixa remuneração, excessiva carga de trabalho,
esgotamento físico e, principalmente emocional dos professores,
entre outros. Como consequência, há efeitos subjetivos tais como
uma forte sensação de impotência, angústia profissional,
desalento e baixa autoestima.
Há muitos estudos sobre as condições
de trabalho e saúde dos professores que comprovam a relação direta
entre o aumento de fatores estressores no trabalho e níveis elevados
de fadiga, alterações do sono, transtornos depressivos e consumo de
medicamentos. No trabalho docente, entre os fatores estressores de
maior relevância encontram-se os relacionados ao ambiente de
trabalho, conteúdo do trabalho, condições organizacionais,
estabilidade no emprego, salário, relações sociais no trabalho,
carga de trabalho, autonomia, reconhecimento e valorização
profissional. Ou seja, são cada vez mais frequentes classes
superlotadas, baixos salários, escassos recursos materiais e
didáticos, excesso de carga horária, falta de participação nas
políticas e planejamento institucionais. O professor tem, ainda, a
obrigatoriedade de desempenhar inúmeras funções dentro do âmbito
escolar além de ministrar aulas: disciplinador e solucionador de
problemas sociais dos alunos, bem como conflitos ocasionados pela
expectativa de pais, administradores e comunidade (GASPARINI,
BARRETO, ASSUNÇÃO, 2005).
Observa-se que os trabalhadores
docentes se sentem obrigados a responder às novas exigências
pedagógicas e administrativas, contudo, expressam sensação de
insegurança e desamparo tanto do ponto de vista objetivo
(faltam-lhes condições de trabalho adequadas) quanto do ponto de
vista subjetivo (um exigente carga mental para solucionar problemas).
Há que se pensar, no entanto, que o
papel da escola não deve ser o de reprodução da sociedade
classista, mas antes o lugar da produção, apropriação e
socialização do saber. Esta é a tarefa por excelência da escola.
De acordo com Saviani (1997, p. 101) “a escola tem uma função
específica, educativa, propriamente pedagógica, ligada à questão
do conhecimento; e é preciso, pois, resgatar a importância da
escola, e reorganizar o trabalho educativo”. Embora a escola não
seja a única responsável pela transformação da sociedade e pelas
contradições existentes, a partir dela poderá ser construída uma
nova consciência que leve à superação do estado de dominação e
desemboque na construção de uma nova ordem social, pois, “a
escola não é a alavanca da transformação social, mas essa
transformação não se fará sem ela” (GADOTTI, 1984, p.73).
Assim sendo, se analisada a situação
de boa parte das escolas públicas, da perspectiva de condições de
existência, há o fato desta apenas cumprir, obedecer e pouco
“pensar” (MORAES, p. 53) o processo pedagógico que nela se
realiza, não se comprometendo efetivamente com o projeto de
emancipação do ser humano. Na sala de aula é comum ocorrer a falta
de postura filosófica, pedagógica e administrativa por parte de
alguns professores, demonstrando com isso pouco compromisso com a
educação e resistência em conhecer as diferentes dimensões do
fenômeno educativo (MORAES, p. 53). E isso não pode ser tomado como
a única fonte do despreparo profissional docente.
Com relação aos alunos,
é notável a presença de indisciplina em sala de aula, desatenção
sistemática, faltas à aula, baixo aproveitamento do ensino,
manifestação de desinteresse e atitudes irresponsáveis, altos
índices de desistência e reprovação, entre outros. Com relação
aos pais, é elevado o número daqueles que não acompanham a vida
escolar do filho e entendem que a sua presença na escola só deve
ser feita quando convocado (matrícula, retirada de boletim,
problemas de saúde do filho durante o período escolar, etc).
Esse panorama pode ser melhor
compreendido a partir da crise atual que toma conta do ser humano em
dimensões planetárias. Não há este
ou aquele indivíduo, sociedade ou nação atingidos por esta crise,
mas todos (HOBSBAWM, 2001).
A sociedade contemporânea é constituída, pois, por elementos dessa
crise.
Uma das principais características da
sociedade atual é o fato desta ser marcada por profundas
transformações: a rapidez de informações e o avanço de novas
tecnologias modificaram o modo de pensar e de viver das pessoas.
Atualmente, as regras e valores já não possuem mais a mesma rigidez
de cinquenta anos atrás. Vive-se em um tempo de quebra de modelos e
paradigmas.
Moraes (2004, p. 48) explica que na
sociedade contemporânea “[...] há uma valorização daquilo que é
quantificável, ou seja, dá-se muita importância a aquisição de
bens materiais, a expansão, a competição e a obsessão pela
tecnologia, decorrentes da valorização do racionalismo crítico, do
empirismo e do individualismo e de uma mentalidade manipuladora da
era industrial”. Explica também que “vivemos hoje, numa
sociedade dominada pelo interesse, pelo lucro, ao mesmo tempo, pela
insegurança e pelo medo. Uma sociedade manipulada por interesses
políticos, econômicos, sociais e religiosos sem precedentes. Na
realidade, vivemos em um mundo cada vez mais globalizado, onde todos
nós somos vítimas inocentes dos ataques terroristas e prisioneiros
das loucuras alheias. Somos todos vítimas do terrorismo como também
de suas represálias. Ao mesmo tempo, somos testemunhas históricas
das enormes carências do ser humano, não apenas em termos de
conhecimento e educação, mas também de afetividade, amor,
solidariedade e espiritualidade” [p. 50].
Já
Agostini (2009, p. 118) analisa que a sociedade contemporânea
“descambou no utilitarismo, abriu o caminho ao consumismo, cultivou
nacionalismos diversos, idolatrou o poder, resvalou num racionalismo
fragmentado, cultivou um individualismo crescente, transmutou a
liberdade em poder possuir desmedidamente, transformou a razão em
instrumentalização técnico-científica, elegeu o mercado como
detentor do poder máximo”.
De acordo com Rojas (2013) as
conquistas técnicas e científicas propiciaram avanços evidentes: a
revolução da informática, os progressos da ciência em seus
diversos aspectos, uma nova ordem social, uma preocupação com os
direitos humanos, a democratização de tantos países etc. Por outro
lado, esse mesmo autor sinaliza aspectos da realidade que funcionam
mal e que mostram a outra face da moeda: materialismo que faz com que
um indivíduo obtenha certo reconhecimento social pelo simples fato
de ganhar muito dinheiro; hedonismo em que viver bem a qualquer custo
é o novo código de comportamento e significa a morte dos ideais, a
ausência de sentido e a busca de uma série de sensações cada vez
mais novas e excitantes; permissividade que arrasa os melhores
propósitos e ideais; relativismo de tudo, o que leva a regras
presididas pela subjetividade; consumismo que representa a fórmula
pós-moderna da liberdade.
Com isso, valores antes referenciais
para a vida em sociedade tornam-se obsoletos, ou configuram atraso em
relação às ideias de mercado. Vive-se sem balizas disciplinares e
institucionais e o ser humano acaba mergulhando na sua própria
subjetividade, na esfera privada, num verdadeiro culto ao
individualismo de cunho narcisista, gerando um processo de isolamento
e de perda da própria essência humanizadora.
Dos meandros dessa realidade
sociocultural vai surgindo o novo perfil de ser humano, produto de
seu tempo. Rojas (2013) indica que é possível delinear alguns
componentes ao perfil desse “novo” ser humano: pensamento fraco,
convicções sem firmeza, assepsia nos compromissos, indiferença sui
generis feita de
curiosidade e relativismo ao mesmo tempo. Esse mesmo autor aponta que
a ideologia é o pragmatismo, a norma de conduta, a vigência social:
que vantagens leva, o que está na moda; a ética se fundamenta na
estatística, substituta da consciência; a moral repleta de
neutralidade, carente de compromisso e subjetividade, fica relegada à
intimidade, sem se atrever a sair em público.
Esses contornos complexos da vida
moderna se tornam presentes nas rotinas escolares das mais variadas
formas, inclusive por meio das ações docentes. Compreender o
contexto mundial, para compreender o contexto local da unidade
escolar é processo essencial no desenvolvimento reflexivo da práxis
pedagógica.
Libâneo, Oliveira e Toschi (1998, p.
598-599) também analisam aspectos da sociedade contemporânea e
destacam a importância, nessa nova realidade mundial, que a ciência
e a inovação tecnológica adquirem. Estas têm levado os estudiosos
a denominarem a sociedade de hoje de sociedade do conhecimento
(DRUCKER, 1999), de sociedade técnico informacional (CASTELLS,
1999), de sociedade tecnológica (SANTOS, 1996), outros ainda,
seguindo a tradição cronológica, de terceira revolução
industrial (KUMAR, 1997). Com essa lógica o conhecimento, o saber e
a ciência adquirem um papel muito mais destacado e por isso mesmo as
pessoas aprendem na fábrica, na televisão, na rua, nos centros de
informação, nos vídeos, no computador e, cada vez mais, vão se
ampliando os espaços de aprendizagem.
Como consequência, a educação é oferecida como uma mercadoria.
Frente
a essa realidade do mundo contemporâneo, Libâneo (2002) destaca
alguns aspectos importantes sobre o posicionamento docente. Segundo
ele, o professor, ao desenvolver sua prática pedagógica diante das
transformações atuais, deve: assumir o ensino com mediação;
adotar práticas interdisciplinares; conhecer estratégias de ensinar
a pensar e ensinar a aprender; mediar os alunos a buscarem uma
perspectiva crítica dos conteúdos; desenvolver um processo
comunicacional e capacidades comunicativas; reconhecer o impacto das
novas tecnologias de comunicação e informação na sala de aula;
atender a diversidade cultural; respeitar as diferenças no contexto
da escola; participar de formação continuada; integrar ao ensino a
dimensão afetiva e desenvolver comportamentos éticos.
Observa-se que isso constitui uma gama enorme de exigências que se
impõem ao professor, como forma deste concretizar de modo atualizado
o ato de ensinar.
E é considerando esse contexto
cultural, social e econômico, complexo, dinâmico e paradoxal, que a
escola pública estadual de educação básica está imersa.
Rios (1993, p. 45) aponta que a escola “tem características
específicas e cumpre uma função determinada, na medida em
que está presente e é constituinte de uma sociedade que se organiza
de maneira peculiar, historicamente.” Nesse espaço o professor
concretiza sua prática. E assim, vai constituindo a sua identidade.
Moraes (2004, p. 221), em
estudos sobre um novo paradigma para a educação escolar, propõe
que se abandone a identidade “de um professor disciplinador,
condicionador, que monopoliza a relação, a informação e a
interpretação dos fatos, que sabe impor e induzir respostas, (e se
busque) […] formar um novo mestre que saiba ouvir mais, observar,
refletir, problematizar conteúdos e atividades, propor
situações-problema, analisar 'erros', fazer perguntas, formular
hipóteses e ser capaz de sistematizar. É ele o mediador entre o
texto, o contexto e o seu produto”. E isso constitui desafios para
a formação de identidade docente em consonância com a escola que
aí está.
Mas que identidade é essa? Como ela
se constitui? Qual sua importância enquanto categoria de análise do
trabalho docente?
REFERÊNCIAS
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Pós-modernidade e ser humano. Revista
de Cultura Teológica,
fascículo 63, 2008, p. 113-126
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em rede. São Paulo: Paz e Terra, 1999.
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pós-capitalista. 7. ed. Rio de Janeiro: Campus, 1999.
GADOTTI, M. Ação
pedagógica e prática social transformadora. Educação e
Sociedade,
v.1, n.
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GASPARINI,
S. M.;
BARRETO, S. M.; ASSUNÇÃO, A. A. O professor, as condições de
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Letras, 2001.
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J. C. Adeus
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exigências educativas e profissão docente. 6. ed. São Paulo:
Cortez, 2002.
______; OLIVEIRA, J. F.;
TOSCHI, M. S. Educação escolar: políticas, estrutura e
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MORAES, M. C. O paradigma
educacional emergente. 10 ed. Campinas: Papirus, 2004.
RIOS, T. A. Ética e
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ROJAS, E. O homem
moderno: a luta contra o vazio.
22. ed. Curitiba: Editora do Chain, 2013.
SANTOS, M. A natureza do
espaço: técnica e tempo, razão e emoção. São Paulo: Hucitec,
1996.
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democracia: teorias da educação, curvatura da vara, onze teses
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histórico-crítica: Primeiras aproximações polêmicas do nosso
tempo. 7. ed. São Paulo. Autores associados, 2008.
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