terça-feira, 14 de janeiro de 2014

CONTEMPORANEIDADE E EDUCAÇÃO: O professor e a escola na sociedade contemporânea

Alexandro Muhlstedt


A docência é um processo complexo que supõe uma compreensão da realidade concreta da sociedade, da educação, da escola, do aluno, do ensino aprendizagem, do saber, bem como um competente repensar e recriar do fazer na área da educação, em suas complexas relação e com a sociedade.
(Ildeu Coelho)

Nosso mundo é um mundo uno.
Mas é um mundo dilacerado.
(Roger Garauday)

Ser professor é transforma o discente em sujeito do seu tempo.
(Alfio Brandemburg)



O trabalho é a identidade básica do ser humano, podendo ser definido como “[...] a intervenção intencional e consciente dos homens na realidade, elemento distintivo do homem dos outros animais” (RIOS 1993, p. 33). Saviani (2006) explica que “a essência humana não é, então, dada ao homem; não é uma dádiva divina ou natural; não é algo que precede a existência do homem. Ao contrário, a essência humana é produzida pelos próprios homens. O que o homem é, é-o pelo trabalho. A essência do homem é um feito humano. É um trabalho que se desenvolve, se aprofunda e se complexifica ao longo do tempo: é um processo histórico” (p. 35). A ação sistemática na escola designa, então, o que se pode chamar de trabalho do professor. É a escola o local primeiro onde a ação docente, junto aos alunos, materializa o ensino. Mas que tipo de trabalho é esse?
Saviani (1991, p. 20) esclarece isso, explicando que a educação é um trabalho, situando-se na categoria do trabalho não-material, como produção de ideias, conceitos, valores. Trata-se, em última instância, “da produção do saber, seja do saber sobre a natureza, seja do saber sobre a cultura, isto é, o conjunto da produção humana”. Nessa produção não-material, o ato de produzir e o ato de consumir imbricam-se, diferenciando-se, por exemplo, de atividades – como a produção de livros e objetos de arte – em que o produto se separa do produtor, havendo um intervalo entre produção e consumo.
Ao trabalhar, concretizando o ato de ensinar, o professor depende, dentre outras coisas, das condições de trabalho. Tais condições contribuem para a construção da identidade docente e suas variantes são fatores importantes para a formação daquilo que ocorre na prática. Saviani (2008, p. 43) assevera que quando são precárias, “essas condições neutralizam a ação dos professores”, mesmo que estes sejam bem formados (conhecimentos acadêmicos e técnicos). De modo geral, ilustram essas condições precárias as salas de aula lotadas, baixa remuneração, excessiva carga de trabalho, esgotamento físico e, principalmente emocional dos professores, entre outros. Como consequência, há efeitos subjetivos tais como uma forte sensação de impotência, angústia profissional, desalento e baixa autoestima.
Há muitos estudos sobre as condições de trabalho e saúde dos professores que comprovam a relação direta entre o aumento de fatores estressores no trabalho e níveis elevados de fadiga, alterações do sono, transtornos depressivos e consumo de medicamentos. No trabalho docente, entre os fatores estressores de maior relevância encontram-se os relacionados ao ambiente de trabalho, conteúdo do trabalho, condições organizacionais, estabilidade no emprego, salário, relações sociais no trabalho, carga de trabalho, autonomia, reconhecimento e valorização profissional. Ou seja, são cada vez mais frequentes classes superlotadas, baixos salários, escassos recursos materiais e didáticos, excesso de carga horária, falta de participação nas políticas e planejamento institucionais. O professor tem, ainda, a obrigatoriedade de desempenhar inúmeras funções dentro do âmbito escolar além de ministrar aulas: disciplinador e solucionador de problemas sociais dos alunos, bem como conflitos ocasionados pela expectativa de pais, administradores e comunidade (GASPARINI, BARRETO, ASSUNÇÃO, 2005).
Observa-se que os trabalhadores docentes se sentem obrigados a responder às novas exigências pedagógicas e administrativas, contudo, expressam sensação de insegurança e desamparo tanto do ponto de vista objetivo (faltam-lhes condições de trabalho adequadas) quanto do ponto de vista subjetivo (um exigente carga mental para solucionar problemas).
Há que se pensar, no entanto, que o papel da escola não deve ser o de reprodução da sociedade classista, mas antes o lugar da produção, apropriação e socialização do saber. Esta é a tarefa por excelência da escola. De acordo com Saviani (1997, p. 101) “a escola tem uma função específica, educativa, propriamente pedagógica, ligada à questão do conhecimento; e é preciso, pois, resgatar a importância da escola, e reorganizar o trabalho educativo”. Embora a escola não seja a única responsável pela transformação da sociedade e pelas contradições existentes, a partir dela poderá ser construída uma nova consciência que leve à superação do estado de dominação e desemboque na construção de uma nova ordem social, pois, “a escola não é a alavanca da transformação social, mas essa transformação não se fará sem ela” (GADOTTI, 1984, p.73).
Assim sendo, se analisada a situação de boa parte das escolas públicas, da perspectiva de condições de existência, há o fato desta apenas cumprir, obedecer e pouco “pensar” (MORAES, p. 53) o processo pedagógico que nela se realiza, não se comprometendo efetivamente com o projeto de emancipação do ser humano. Na sala de aula é comum ocorrer a falta de postura filosófica, pedagógica e administrativa por parte de alguns professores, demonstrando com isso pouco compromisso com a educação e resistência em conhecer as diferentes dimensões do fenômeno educativo (MORAES, p. 53). E isso não pode ser tomado como a única fonte do despreparo profissional docente.
Com relação aos alunos, é notável a presença de indisciplina em sala de aula, desatenção sistemática, faltas à aula, baixo aproveitamento do ensino, manifestação de desinteresse e atitudes irresponsáveis, altos índices de desistência e reprovação, entre outros. Com relação aos pais, é elevado o número daqueles que não acompanham a vida escolar do filho e entendem que a sua presença na escola só deve ser feita quando convocado (matrícula, retirada de boletim, problemas de saúde do filho durante o período escolar, etc).
Esse panorama pode ser melhor compreendido a partir da crise atual que toma conta do ser humano em dimensões planetárias. Não há este ou aquele indivíduo, sociedade ou nação atingidos por esta crise, mas todos (HOBSBAWM, 2001). A sociedade contemporânea é constituída, pois, por elementos dessa crise.
Uma das principais características da sociedade atual é o fato desta ser marcada por profundas transformações: a rapidez de informações e o avanço de novas tecnologias modificaram o modo de pensar e de viver das pessoas. Atualmente, as regras e valores já não possuem mais a mesma rigidez de cinquenta anos atrás. Vive-se em um tempo de quebra de modelos e paradigmas.
Moraes (2004, p. 48) explica que na sociedade contemporânea “[...] há uma valorização daquilo que é quantificável, ou seja, dá-se muita importância a aquisição de bens materiais, a expansão, a competição e a obsessão pela tecnologia, decorrentes da valorização do racionalismo crítico, do empirismo e do individualismo e de uma mentalidade manipuladora da era industrial”. Explica também que “vivemos hoje, numa sociedade dominada pelo interesse, pelo lucro, ao mesmo tempo, pela insegurança e pelo medo. Uma sociedade manipulada por interesses políticos, econômicos, sociais e religiosos sem precedentes. Na realidade, vivemos em um mundo cada vez mais globalizado, onde todos nós somos vítimas inocentes dos ataques terroristas e prisioneiros das loucuras alheias. Somos todos vítimas do terrorismo como também de suas represálias. Ao mesmo tempo, somos testemunhas históricas das enormes carências do ser humano, não apenas em termos de conhecimento e educação, mas também de afetividade, amor, solidariedade e espiritualidade” [p. 50].
Agostini (2009, p. 118) analisa que a sociedade contemporânea “descambou no utilitarismo, abriu o caminho ao consumismo, cultivou nacionalismos diversos, idolatrou o poder, resvalou num racionalismo fragmentado, cultivou um individualismo crescente, transmutou a liberdade em poder possuir desmedidamente, transformou a razão em instrumentalização técnico-científica, elegeu o mercado como detentor do poder máximo”.
De acordo com Rojas (2013) as conquistas técnicas e científicas propiciaram avanços evidentes: a revolução da informática, os progressos da ciência em seus diversos aspectos, uma nova ordem social, uma preocupação com os direitos humanos, a democratização de tantos países etc. Por outro lado, esse mesmo autor sinaliza aspectos da realidade que funcionam mal e que mostram a outra face da moeda: materialismo que faz com que um indivíduo obtenha certo reconhecimento social pelo simples fato de ganhar muito dinheiro; hedonismo em que viver bem a qualquer custo é o novo código de comportamento e significa a morte dos ideais, a ausência de sentido e a busca de uma série de sensações cada vez mais novas e excitantes; permissividade que arrasa os melhores propósitos e ideais; relativismo de tudo, o que leva a regras presididas pela subjetividade; consumismo que representa a fórmula pós-moderna da liberdade.
Com isso, valores antes referenciais para a vida em sociedade tornam-se obsoletos, ou configuram atraso em relação às ideias de mercado. Vive-se sem balizas disciplinares e institucionais e o ser humano acaba mergulhando na sua própria subjetividade, na esfera privada, num verdadeiro culto ao individualismo de cunho narcisista, gerando um processo de isolamento e de perda da própria essência humanizadora.
Dos meandros dessa realidade sociocultural vai surgindo o novo perfil de ser humano, produto de seu tempo. Rojas (2013) indica que é possível delinear alguns componentes ao perfil desse “novo” ser humano: pensamento fraco, convicções sem firmeza, assepsia nos compromissos, indiferença sui generis feita de curiosidade e relativismo ao mesmo tempo. Esse mesmo autor aponta que a ideologia é o pragmatismo, a norma de conduta, a vigência social: que vantagens leva, o que está na moda; a ética se fundamenta na estatística, substituta da consciência; a moral repleta de neutralidade, carente de compromisso e subjetividade, fica relegada à intimidade, sem se atrever a sair em público.
Esses contornos complexos da vida moderna se tornam presentes nas rotinas escolares das mais variadas formas, inclusive por meio das ações docentes. Compreender o contexto mundial, para compreender o contexto local da unidade escolar é processo essencial no desenvolvimento reflexivo da práxis pedagógica.
Libâneo, Oliveira e Toschi (1998, p. 598-599) também analisam aspectos da sociedade contemporânea e destacam a importância, nessa nova realidade mundial, que a ciência e a inovação tecnológica adquirem. Estas têm levado os estudiosos a denominarem a sociedade de hoje de sociedade do conhecimento (DRUCKER, 1999), de sociedade técnico informacional (CASTELLS, 1999), de sociedade tecnológica (SANTOS, 1996), outros ainda, seguindo a tradição cronológica, de terceira revolução industrial (KUMAR, 1997). Com essa lógica o conhecimento, o saber e a ciência adquirem um papel muito mais destacado e por isso mesmo as pessoas aprendem na fábrica, na televisão, na rua, nos centros de informação, nos vídeos, no computador e, cada vez mais, vão se ampliando os espaços de aprendizagem. Como consequência, a educação é oferecida como uma mercadoria.
Frente a essa realidade do mundo contemporâneo, Libâneo (2002) destaca alguns aspectos importantes sobre o posicionamento docente. Segundo ele, o professor, ao desenvolver sua prática pedagógica diante das transformações atuais, deve: assumir o ensino com mediação; adotar práticas interdisciplinares; conhecer estratégias de ensinar a pensar e ensinar a aprender; mediar os alunos a buscarem uma perspectiva crítica dos conteúdos; desenvolver um processo comunicacional e capacidades comunicativas; reconhecer o impacto das novas tecnologias de comunicação e informação na sala de aula; atender a diversidade cultural; respeitar as diferenças no contexto da escola; participar de formação continuada; integrar ao ensino a dimensão afetiva e desenvolver comportamentos éticos. Observa-se que isso constitui uma gama enorme de exigências que se impõem ao professor, como forma deste concretizar de modo atualizado o ato de ensinar.
E é considerando esse contexto cultural, social e econômico, complexo, dinâmico e paradoxal, que a escola pública estadual de educação básica está imersa. Rios (1993, p. 45) aponta que a escola “tem características específicas e cumpre uma função determinada, na medida em que está presente e é constituinte de uma sociedade que se organiza de maneira peculiar, historicamente.” Nesse espaço o professor concretiza sua prática. E assim, vai constituindo a sua identidade. Moraes (2004, p. 221), em estudos sobre um novo paradigma para a educação escolar, propõe que se abandone a identidade “de um professor disciplinador, condicionador, que monopoliza a relação, a informação e a interpretação dos fatos, que sabe impor e induzir respostas, (e se busque) […] formar um novo mestre que saiba ouvir mais, observar, refletir, problematizar conteúdos e atividades, propor situações-problema, analisar 'erros', fazer perguntas, formular hipóteses e ser capaz de sistematizar. É ele o mediador entre o texto, o contexto e o seu produto”. E isso constitui desafios para a formação de identidade docente em consonância com a escola que aí está.
Mas que identidade é essa? Como ela se constitui? Qual sua importância enquanto categoria de análise do trabalho docente?

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
AGOSTINI, N. Pós-modernidade e ser humano. Revista de Cultura Teológica, fascículo 63, 2008, p. 113-126
CASTELLS, M. A sociedade em rede. São Paulo: Paz e Terra, 1999.
DRUCKER,P. F. Sociedade pós-capitalista. 7. ed. Rio de Janeiro: Campus, 1999.
GADOTTI, M. Ação pedagógica e prática social transformadora. Educação e Sociedade, v.1, n. 4, p. 5-14, set. 1984.
GASPARINI, S. M.; BARRETO, S. M.; ASSUNÇÃO, A. A. O professor, as condições de trabalho e os efeitos sobre sua saúde. Revista Educação e Pesquisa, vol.31, n.2, São Paulo, Mai/Ago. 2005.
HOBSBAWM, E. J. Era dos extremos: o breve século XX. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
KUMAR, K. Da sociedade pós-industrial à pós-moderna: novas teorias sobre o mundo contemporâneo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997.
LIBÂNEO, J. C. Adeus professor, adeus professora?: novas exigências educativas e profissão docente. 6. ed. São Paulo: Cortez, 2002.
______; OLIVEIRA, J. F.; TOSCHI, M. S. Educação escolar: políticas, estrutura e organização. 7 ed. São Paulo: Cortez, 2009.
MORAES, M. C. O paradigma educacional emergente. 10 ed. Campinas: Papirus, 2004.
RIOS, T. A. Ética e competência. São Paulo: Cortez, 1993.
ROJAS, E. O homem moderno: a luta contra o vazio. 22. ed. Curitiba: Editora do Chain, 2013.
SANTOS, M. A natureza do espaço: técnica e tempo, razão e emoção. São Paulo: Hucitec, 1996.
SAVIANI, D. Escola e democracia: teorias da educação, curvatura da vara, onze teses sobre educação e política. 31. ed. Campinas: Autores Associados, 1997.
______. Pedagogia histórico-crítica: Primeiras aproximações polêmicas do nosso tempo. 7. ed. São Paulo. Autores associados, 2008.

Nenhum comentário:

Postar um comentário