Alexandro Muhlstedt
Do
diálogo entre o já adquirido e
o que ora se
adquire,
e uma certa nuance do devir, surgem sincretismos que correspondem à
emergência de uma nova
dimensão do ser, não estática, nunca terminada, sempre sujeita a
mudanças, a reconstruções identitárias.
(Ricardo
Vieira)
A
presença no mundo não é a de quem a ele se adapta, mas a de quem
nele se insere. É a posição de quem luta para não ser apenas
objeto, mas sujeito também da Historia.
(Paulo
Freire)
É
na inconclusão do ser, que se sabe como tal, que se funda a educação
como
processo permanente.
Mulheres
e homens se tornaram educáveis,
na
medida em que se reconheceram inacabados.
(Paulo Freire)
É no contexto mundial da sociedade
contemporânea, e também local, de lógica capitalista, com forte
presença da ideologia neoliberal, que a escola pública de educação
básica do Paraná está situada e onde configura-se o espaço de
formação da identidade docente do professor. As questões
econômicas, de mercado, entram na escola por meio de mecanismos que
causam, entre outras coisas, problemas de repetência, evasão dos
alunos e, ao professor, um desânimo e adoecimento físico e mental.
E este quadro não pode servir de tônica única para a formação
política do professor, visto que o fazer pedagógico do professor
não pode ser deixado de lado, assim como a consciência política
não pode ser desvinculada da ação do professor.
A consciência política alivia as
culpabilizações emocionais individuais e coletivas e contribui para
construir autoestima com a profissão, identificar-se com o fazer
pedagógico docente e entender também os limites da ação
profissional.
Como já foi mencionado, é por meio
de sua atuação que o professor vai constituindo sua práxis e os
saberes da experiência. Estes, como exercício da prática cotidiana
da profissão, são fundados no trabalho e no conhecimento do meio.
“São saberes que brotam da experiência e são por ela validados.
Incorporam-se à vivência individual e coletiva sob a forma de
habitus e
de habilidades, de saber fazer e de saber ser” (TARDIF, 1991. p.
220).
Dialogar com os saberes da
experiência, que têm origem na prática cotidiana do professor em
confronto com as condições de trabalho, se torna fundamental para
compreender que eles "...não são saberes como os demais, eles
são, ao contrário, formados de todos os demais, porém
retraduzidos, 'polidos' e submetidos às certezas construídas na
prática e no vivido" (TARDIF, 1991. p. 232).
O processo de construção dos saberes
da prática não é automático. Dominar tais saberes não garante a
competência técnica e política da ação docente. Uma das formas
de compreender como esse processo se realiza é trabalhar com a
categoria de habitus de
Bourdieu. Tal categoria pode ser compreendida no contexto de trabalho
do professor como disposições adquiridas na e para a prática real,
e que permitem ao professor enfrentar os desafios imponderáveis da
profissão, constituindo a condição básica para um novo
profissionalismo.
Habitus
é conceito capaz de conciliar a oposição aparente entre realidade
exterior e as realidades individuais.
Pensar a relação entre indivíduo e
sociedade, entre professor e escola, com base na categoria habitus
implica afirmar que o
individual, o pessoal e o subjetivo são simultaneamente sociais e
coletivamente orquestrados. O habitus
é uma subjetividade socializada (BOURDIEU, 1992, p. 101).
Analisar a ação docente, tendo como
base e ferramenta a categoria habitus,
propicia a compreensão da relação que se estabelece entre os
condicionantes sociais exteriores (condições de trabalho do
professor, por exemplo) e a subjetividade dos sujeitos (formas de
proceder em sala de aula, por exemplo). Habitus
não é fatalidade. Habitus
é consequência de uma trajetória de vida que auxilia a pensar as
características de um ser social (no caso, o professor) e que se
materializa como um sistema de disposições ora consciente ora
inconsciente de suas escolhas (no caso, a práxis docente). Por meio
do conceito habitus
entende-se “o processo de constituição das identidades sociais no
mundo contemporâneo, uma vez que o habitus
passa a ser o social
incorporado” (SETTON, 2002, p. 33).
Bourdieu (2004, p. 134) assevera que o
habitus
é produto da inculcação exercida pelas condições objetivas de
existência, e este ao ser incorporado através de um processo longo,
é transformado em uma forma de ser, pensar e agir presente em cada
indivíduo, oportunizando uma quebra entre individuo e sociedade,
sendo o habitus
o princípio não escolhido de tantas escolhas que desespera os
nossos humanistas
As atividades que são desenvolvidas
na escola, coordenadas pelo professor, criam o ser social. O meio
utilizado são as estratégias educacionais que são movidas pelos
habitus
tanto do professor (com seus saberes adquiridos e incorporados na sua
trajetória de vida) como dos alunos e esses vão sendo mobilizados
durante todo o processo educacional.
Setton (2001, p.61) explica habitus
como “uma matriz cultural que predispõe os indivíduos a fazerem
suas escolhas.” Assim, pode se compreender que o habitus
profissional do professor é constituído antes mesmo de sua inserção
no espaço escolar. Uma vez desenvolvendo sua práxis pedagógica e
construindo seus saberes docentes, o professor pode questionar seu
habitus, buscando
compreender, por meio da reflexão, a sua própria ação. Com isso,
construir novo habitus
a partir de ações experienciadas na prática.
A partir da categoria habitus
é possível compreender o sujeito no mundo. Nesta perspectiva, há
uma tendência em reduzir a prática docente a uma prática
individualizada. A crise que ocorre nas instituições sociais afeta
sobremaneira o fazer pedagógico docente. Afinal, o processo de
globalização acompanhado ao avanço tecnológico tem provocado
alterações significativas na sociedade atual. O destaque é a
individualização, a luta pelos direitos individuais e a busca pela
afirmação da identidade.
Perceber o professor e desvelar sua
ação docente no interior da escola é percebê-lo neste contexto
altamente globalizador, na perspectiva de indivíduo e sujeito ativo
no processo de seu trabalho. A finalidade da educação escolar na
sociedade tecnológica, multimídia e globalizada, grosso modo, é
trabalhar os conhecimentos científicos e tecnológicos,
desenvolvendo aptidões para operá-los, revê-los e reconstruí-los.
Inegável o papel do professor para conduzir de modo competente e
coerente este processo. Ao analisar a prática educativa do
professor, há que se levar em consideração os seus processos de
formação e desenvolvimento profissional, haja vista que sua função
docente abrange enorme quantidade de atribuições e atividades.
Enquanto prática social, a educação
ocorre em inúmeras instituições da sociedade, mas é na escola,
enquanto processo sistemático e intencional, que esta ocorre com
destaque. E é justamente no trabalho do professor que este processo
acontece. Assim, no trabalho com seus alunos, o professor assume uma
responsabilidade que é pedagógica, ao mesmo tempo que é social e
política.
A formação profissional do professor
é construída, pois, por diversificadas experiências que compõem e
fundamentam a prática pedagógica. Construir-se professor requer,
desde a formação inicial, a constante reflexão do que se faz, como
se faz e como deveria ser feito. Esse movimento de construir e
reconstruir a prática pedagógica resulta no processo dialético que
norteará a formação profissional
Nas atuais tendências investigativas
sobre a docência, a constituição da
profissionalidade do professor vem emergindo como uma temática
relevante, que tem como referência os contextos e processos
envolvidos na constituição do ser professor. Sacristán (1995, p.
65) entende a profissionalidade como, “[...] a afirmação do que é
específico na ação docente, isto é, o conjunto de comportamentos,
conhecimentos, destrezas, atitudes e valores que constituem a
especificidade de ser professor”. De acordo com Ambrosetti e
Almeida (1999) o conceito de profissionalidade sugere uma nova
perspectiva para a docência visando compreendê-la, em sua
complexidade, como uma construção que se dá nas relações entre
os indivíduos e os espaços sociais nos quais exercem sua atividade
profissional. Na perspectiva da profissionalidade os professores são
compreendidos como atores sociais que, agindo num espaço
institucional dado, constroem nessa atividade sua vida e sua
profissão. Como destacam Tardif e Lessard (2005, p. 38), os
professores são atores que “[...] dão sentido e significado aos
seus atos, e vivenciam sua função como uma experiência pessoal,
construindo conhecimentos e uma cultura própria da profissão”.
Nesse sentido, as dimensões do social e do psicológico se integram
nas formas de viver o trabalho e de se identificar com a profissão.
Para atender os requisitos da
profissionalidade docente, Contreras (2002) apresenta três dimensões
constitutivas deste conceito: 1. a obrigação
moral por ser o ensino uma
atividade que supõe um compromisso de caráter moral para quem o
realiza; 2. o compromisso
com a comunidade na qual os
professores devem realizar a prática profissional, pois educação
não é um problema da vida privada do professor, mas uma ocupação
socialmente encomendada e responsabilizada publicamente e 3. a
competência profissional
para o cumprimento da
obrigação moral e o compromisso com a comunidade, que combinam
habilidades, princípios e consciência do sentido e das
consequências das práticas pedagógicas.
Para Contreras (2002), ainda, a
profissionalidade se refere às qualidades da prática profissional
dos professores em função das exigências do trabalho educativo.
Nesta perspectiva, falar de profissionalidade significa, “[...] não
só descrever o desempenho do trabalho de ensinar, mas também
expressar valores e pretensões que se deseja alcançar e desenvolver
nesta profissão”.
Entendendo, então, a
profissionalidade como um processo de constituição e identificação
profissional, é desenvolvido pelos professores ao longo de sua
trajetória, nos diferentes espaços de socialização, desde a
escolarização básica, passando pela formação profissional e,
principalmente, na organização escolar, onde os professores
exercem, aprendem e desenvolvem a profissão. Esse processo envolve
uma relação dialética entre as condições sociais e
institucionais colocadas ao trabalho docente e as formas de viver
e praticar a docência, desenvolvidas pelos professores individual e
coletivamente, que são constituídas e constituem o contexto
escolar.
A formação docente
(inicial e continuada) apresenta assim duas facetas: pode ser
considerada como espaço de aquisição e de reforço do habitus
de
ensinar (nos termos propostos por Bourdieu) e como espaço de
construção de uma “identidade profissional”, que não somente
opõe-se à “identidade vocacional” mas propõe-se a superá-la.
E é aí que reside o processo de profissionalidade docente, quiça
torne-se o principal instrumento de conquista de um maior prestígio
social da profissão, de melhores condições de trabalho e
remuneração, de desenvolvimento de uma consciência crítica, de
engajamento nas lutas do magistério e na transformação social.
Discutir a
profissionalidade docente é ir para além da formação pedagógica,
é trazer também, como objeto de estudo, os caminhos que o próprio
professor busca para alcançar seu desenvolvimento profissional.
Nessa perspectiva, os saberes docentes têm muito a contribuir.
Segundo Tardif (2002), existem diferentes formas de se analisar os
saberes construídos pelos professores, referenciados pelo autor com
base em três dimensões: social, temporal e plural. Os saberes
sociais são adquiridos na relação com o outro (aluno, pares,
instituição, sociedade), no contexto de uma socialização
profissional; os saberes temporais ocorrem ao longo da vida do
professor, mesmo antes que inicie sua carreira docente; e finalmente,
os saberes plurais, que emanam de várias fontes: “O saber dos
professores é plural, compósito, heterogêneo, porque envolve, no
próprio exercício do trabalho, conhecimentos e um saber-fazer
bastante diversos, provenientes de fontes variadas e, provavelmente,
de natureza diferente.” (TARDIF, 2002, p. 18).
Há que considerar que na
elaboração desses saberes a experiência como aluno é parte
constituinte da identidade docente, é um tipo de habitus
que poderia explicar determinadas escolhas e comportamentos na
prática pedagógica. Afinal, a vivência como aluno também traz
raízes tradicionalistas sobre a forma de ensinar, a concepção de
aluno, a visão da educação e o papel da escola. Tardif (2002, p.
74-75) reforça que essa vivência pode levar a um “[...] papel
institucionalizado do professor [...]”, que pode expressar
dificuldades em acatar o novo, por manter “[...] esquemas de ação
e interpretação implícitos, instáveis e resistentes através do
tempo.” Essa cristalização de ideias e comportamentos poderia ser
um dos aspectos que explicaria as dificuldades de alguns professores
em analisar, criticamente, a sua atuação docente ou mudar
comportamentos.
Por fim, a atividade de
ensino é um processo complexo que envolve os mais diferentes
saberes: pedagógicos, sociais, culturais, afetivos, políticos,
históricos, etc. É na atuação profissional que o professor
aprende e coloca em ação os saberes de que dispõe. Os processos
formativos não estão somente nos cursos de formação inicial e
continuada, mas nas mais diferenciadas vivências pelas quais passa o
professor. O cotidiano da sala de aula, por exemplo, pode ser um
“lócus”
de construção de saberes, pois eles fornecem elementos que auxiliam
na resolução de questões específicas da sala de aula, sendo que
as situações reais vividas em sala podem ser geradoras de saberes
docentes. E é essa clarificação do “ser docente” e dos
“saberes docentes” que compõem, também, o processo de
profissionalidade permeado por um processo reflexivo e crítico.
A ideia de
profissionalidade repõe, então, a centralidade dos professores como
atores da prática educativa. Que importância tem, então, essa
centralidade no ato de ensinar, de concretizar o currículo
na sala de aula?
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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ALMEIDA, P. C. A. de. Profissionalidade docente: uma análise a
partir das relações constituintes entre os professores e a escola.
In: Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, Brasília, v. 90, n.
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Ditas. São Paulo: Brasiliense, 2004.
CONTRERAS, J. A autonomia
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SACRISTÁN,
J. G. Consciência
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In: NÓVOA, A. (org.). Profissão professor. 2. ed. Portugal: Porto,
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SETTON,
M. da G. J. A teoria do habitus em Pierre Bourdieu: uma leitura
contemporânea. Revista Brasileira de Educação,
n. 20. maio/jun./jul./ago.
de 2002.
TARDIF, M. . Saberes
docentes e formação profissional. Petrópolis: Vozes, 2002.
______; LESSARD, C. O
trabalho docente: elementos para uma teoria da docência como
profissão de interações humanas. 7 ed. Petrópolis: Vozes, 2012.
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